Greve dos estafetas no Brasil expõe precarização do trabalho através das aplicações

02 de julho 2020 - 19:02

Em entrevista ao site Conectas, os investigadores Ruy Braga e Ricardo Antunes discutem o modelo de trabalho imposto por aplicações de entrega ou de viagens, e avaliam alternativas à luz da legislação laboral.

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Foto de Roberto Parizotti – 05/06/2020

As medidas de isolamento social, impostas pela pandemia de Covid-19, colocaram em evidência o trabalho dos trabalhadores das plataformas e as condições a que estes trabalhadores e trabalhadoras estão submetidos, com jornadas extenuantes, critérios de remuneração pouco claros e completa ausência de direitos ou benefícios sociais. Por conta disso, neste 1º de julho acontece, no Brasil, a primeira paralisação nacional dos estafetas que trabalham para estas aplicações.

Para avaliar as irregularidades deste modelo de trabalho à luz da legislação laboral, e pensar alternativas que contemplem direitos aos trabalhadores, o site Conectas ouviu, separadamente, dois dos mais importantes investigadores brasileiros que estudam relações contemporâneas do trabalho. 

Ruy Braga é professor do departamento de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro “A política do precariado” e Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do livro “O privilégio da servidão”.

Conectas – Trabalhadores ou empreendedores? Como definem as pessoas que estão a viver ou a ganhar recursos extras através destas aplicações?

Ricardo Antunes é sociólogo e professor emérito da Unicamp (foto: Sintrajud/divulgação)

Ricardo Antunes – O “empreendedorismo” é uma categoria com forte sentido apologético e de manipulação. No fundo, significa dizer que você precisa de criar as condições para fazer o seu próprio negócio e, portanto, sobreviver. É uma categoria que transfere para o indivíduo a capacidade, a necessidade e a obrigação de trabalhar fora da legislação social do trabalho. O sentido mais nefasto do empreendedorismo é individualizar a classe trabalhadora e criar a ilusão de que ela sobrevive sozinha. Os trabalhadores e trabalhadoras destas plataformas deveriam ter o reconhecimento da sua condição de assalariados, como os demais. A sua conversão em “prestadores de serviço” serve para mascarar esta condição e fazer com que não tenham os direitos que, normalmente, o conjunto da classe trabalhadora tem, como férias, 13º salário, descanso semanal, proteção na saúde etc.  

Ruy Braga – No caso dos trabalhadores das aplicações, eles claramente são trabalhadores subalternos e dependentes das empresas porque eles, sozinhos, não têm autonomia. Eles não têm tempo livre que não tenha sido colonizado pelo tempo de trabalho. Como eles são dependentes, eles não exercem uma atividade profissional autónoma, eles não trabalham para si próprios. Eles trabalham para as empresas, então é um erro chamá-los de empreendedores. Na realidade eles são trabalhadores precários, ou seja, sem um contrato de trabalho, sem acesso a direitos laborais, sem acesso a direitos de segurança social. Eles não podem ser considerados empreendedores.

Conectas – Quais os desafios laborais que estas plataformas impõem à legislação laboral brasileira?

Ruy Braga pesquisa sociologia do trabalho e é professor do departamento de sociologia da FFLCH/USP (foto: divulgação)

Ruy Braga – O que estas empresas de entrega têm feito é burlar a legislação laboral, ou seja, eles evitam pagar direitos laborais e de segurança social. Consequentemente, uma das fontes principais da sua rentabilidade empresarial tem a ver com o facto de que elas exploram o trabalhador, não reconhecendo este vínculo [contratual]. Não é à toa que elas gastam tanto com advogados, exatamente para elaborar contratos que minuciosamente evitem reconhecer estes trabalhadores como sendo trabalhadores subalternos e dependentes das empresas de aplicações. Estas empresas fazem algo que é muito ameaçador para a sociedade. Por um lado, elas reúnem tecnologias de ponta como monitorização remota, geolocalização, algoritmos bastante sofisticados de distribuição de pedidos, de disponibilização de de trabalhadores e de controle sobre estes – sim, porque estes trabalhadores são controlados por algoritmos — inteligência artificial, machine learning e tudo que existe de mais avançado. Ao mesmo tempo juntam o que existe de mais atrasado, que é a espoliação de direitos laborais e mercantilização do trabalho, como se o trabalho fosse uma mercadoria como qualquer outra. Outro aspecto tem a ver com a construção ideológica do “empreendedor” como sendo alguém que trabalha para si, autónomo, que tem flexibilidade, liberdade – o que também não é correto. Eles são trabalhadores subalternos e dependentes dessas empresas. Inclusive, o sistema de pontuação dessas empresas faz com que eles se vejam na obrigação de escolher uma aplicação, caso contrário eles não vão ter chamadas para percorrer ao longo da semana.

Ricardo Antunes – Utilizando-se o artifício de defini-las como “prestadoras de serviços”,  estas plataformas utilizam uma massa enorme de uma força de trabalho, à margem da legislação social protetora do trabalho. O maior problema destas aplicações é impor ritmos extenuantes de trabalho e condições de salário para os quais os trabalhadores e trabalhadoras não têm nenhum controle porque são movidos por algoritmos. São os algoritmos que comandam o tempo, a jornada e a intensidade de trabalho. É imperioso que os aproximadamente 5 milhões de estafetas, ou condutores, tenham uma legislação que reconheça sua condição de assalariados. Não é possível aceitar que uma empresa desligue o trabalhador e a trabalhadora sem explicar porquê. Seria muito fácil para o sistema judicial conferir os algoritmos dessas empresas e reconhecer que trabalharam jornadas de seis, oito ou até 12 ou 14 horas por dia. Estes não apenas são assalariados como muitas vezes se diz, são superexplorados.

Conectas – Algum país no mundo já reconheceu vínculos laborais entre estafetas e motoristas e as empresas das aplicações? Se sim, quais os direitos foram concedidos?

Ruy Braga – Sim, vários países. O caso mais notório é o do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, onde o Senado votou uma lei que foi sancionada pelo governador, e que reconhece os motoristas das plataformas como sendo trabalhadores subalternos e dependentes das empresas, consequentemente tendo acesso a direitos contratuais e laborias, tendo que negociar coletivamente e assinar contratos. É muito importante dizer que a economia das plataformas opera numa espécie de limbo jurídico, que é derivado da omissão do poder público. Quando o poder público decide regular, ele consegue claramente identificar os vínculos e laços de subalternidade e dependência e consequentemente pode caracterizar esses laços como sendo laços laborais bastante típicos.

Ricardo Antunes – Este é um fenómeno muito recente. Há uma década estas empresas nem sequer existiam, mas como se expandiram intensamente, é evidente que agora se discuta sobre uma legislação social protetora do trabalho. O caso mais emblemático é do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, que recentemente determinou que todos os trabalhadores com jornadas de trabalho intensas sejam considerados trabalhadores e, portanto, sujeitos à legislação social protetora do trabalho com direitos previstos, incluindo o de sindicalização. No Brasil, já houve julgamentos em primeira e em segunda instância que reconheceram a dependência e a condição de assalariado. Mas, como acontece em todos os sistemas judiciais do mundo, o que para um juiz do trabalho configura uma condição de trabalho assalariado, para outro significa uma forma de empreendedorismo e parceria. Há manifestações favoráveis na Inglaterra, onde a UBER foi recentemente impedida de funcionar pelo tribunal londrino. A mesma coisa está a ocorrer em França, na Espanha, assim como nos países escandinavos, que não permitem este tipo de empresas, porque ferem a legislação social protetora do trabalho.

Conectas – Qual seria o modelo ideal a ser aplicado no Brasil? Os contratos de trabalho devem ser regidos pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) ou por algum modelo intermediário?

Ricardo Antunes – Eu não falaria em modelo ideal mas, todas as vezes em que você vende a sua força de trabalho, por jornadas que se figuram jornadas diárias, e equivalentes à jornada dos demais trabalhadores, é preciso reconhecer direitos, tais como férias, 13º salário, descanso semanal, proteção na saúde. O reconhecimento da condição de assalariado é o que se exige dessas empresas que valem milhões e que alegam dificuldades financeiras para pagar aos seus trabalhadores. Ora, se têm dificuldades financeiras para funcionar, que não funcionem. O que não pode é se enriquecer com mais intensidade às custas da burla da legislação social protetora do trabalho, em países onde é baixo o reconhecimento dos direitos laborais.

Ruy Braga – Considero que deveria haver o reconhecimento pela CLT. A CLT é suficientemente flexível para acolher estes trabalhadores, com estas características que podemos observar na economia das plataformas. É possível pensar em formas alternativas, depois do que aconteceu em novembro de 2017. Com a reforma trabalhista, fala-se muito do contrato de trabalho intermitente, que poderia ser uma alternativa intermediária ou espécie de transição numa direção um pouco mais protetora no futuro. É possível imaginar várias formas contratuais. O que não é possível imaginar é este limbo, este “salve-se quem puder” que hoje se observa na economia das plataformas, em especial aquela que é praticada no Brasil. O contrato CLT prevê a possibilidade de identificar e remunerar por intermédio da lei do salário mínimo. É assim possível ter uma base de cálculo das corridas, das jornadas. É necessário regular a jornada de trabalho para garantir o descanso remunerado. É necessário incorporar estes trabalhadores no sistema de segurança social, em especial na segurança pública, e é muito importante conseguir, de alguma maneira, caracterizar este vínculo como sendo um vínculo de trabalho subalterno e dependente.

Conectas – As aplicações representam uma nova economia e uma oportunidade de gerar trabalho e rendimento. Uma regulamentação poderia arruinar este modelo?

Ruy Braga – Estas empresas estão a faturar milhões ao ano, estão a remunerar os seus acionistas de uma forma bastante generosa. É uma falácia achar que uma regulação mínima de um tipo de trabalho superexplorado possa eventualmente arruinar uma empresa. Se arruinar a empresa significa pagar o mínimo que prevê a legislação laboral, então este modelo de negócio não se sustenta. É um modelo irresponsável, um modelo, vamos dizer assim, que não é nada inovador, nem razoável para uma economia minimamente saudável.

Ricardo Antunes – Se uma empresa utiliza o trabalho de homens e mulheres para aumentar seus lucros e enriquecimento privado, é imprescindível a existência de uma legislação social protetora do trabalho. A ideia de que oferecer direitos pode arruinar a empresa é nefasta porque cria a mensagem de que, para uma empresa ser rentável, precisamos de ter uma massa de trabalhadores escravizados. No meu livro, “O privilégio da servidão”, eu tratei deste fenómeno e disse que estamos a viver uma forma que se assemelha a um tipo de escravidão digital. São empresas que operam com maquinaria tecno-científico-informacional muito desenvolvida, e que utilizam relações antiquadas de trabalho, com jornadas extenuantes, ritmos alucinantes, com acidentes, mortes e tantos outros elementos nefastos.  

Conectas – Como vê a greve dos estafetas do 1º de julho?

Ricardo Antunes – A luta por direitos depende fundamentalmente da capacidade de mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras. Já há desenhos de organização de uma associação mundial destes trabalhadores. Em maio de 2019 houve uma tentativa de greve geral dos trabalhadores das plataformas. A paralisação programada para este dia 1 de julho no Brasil é muito importante porque exige que alguns direitos sejam garantidos. A paralisação é uma forma de dizer que os trabalhadores não aceitam a redução da jornada de trabalho, e não aceitam que sejam demitidos unilateralmente. Isso cria condições sociais para reconhecer a sua situação de assalariados.

Ruy Braga – É uma primeira forma, um primeiro momento, uma primeira experiência de organização de trabalhadores das plataformas, o que é muito positivo. Tem características inovadoras do ponto de vista da auto-organização, que temos verificado por todo o mundo, em especial esta forma de organização apoiada na ação direta e utilizando o WhatsApp, as redes sociais, fora dos sindicatos, mas colhendo, em muitos casos, o apoio dos sindicatos de motociclistas. Tem todos os elementos que fazem com que este movimento seja, de facto, alinhado com as tendências mais contemporâneas de organização destes trabalhadores precários que observamos por todo o mundo.


Entrevista publicada no site da ONG brasileira Conectas. Adaptado para português europeu por Marco Marques.