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De Saigão a Cabul

Os países ocidentais que participaram na invasão do Afeganistão chegam a este dia, 20 anos depois, dando sinal de que não perceberam nada, nem sequer o momento em que deveriam sair do país. Por José Manuel Rosendo em meu Mundo minha Aldeia.
Equipamento militar dos EUA capturado por Taliban. Foto de Stringer via EPA/Lusa.
Equipamento militar dos EUA capturado por Taliban. Foto de Stringer via EPA/Lusa.

Paris, 18h00

“Oficialmente”, Cabul ainda não caiu, mas é como se já tivesse caído. A saída/fuga do Presidente é a marca da mudança de poder no Afeganistão. Fontes insuspeitas confirmam a saída de Ashraf Ghani do Afeganistão e uma fonte do Ministério do Interior adianta que foi para o Tajiquistão (faz fronteira, a norte, com o Afeganistão) embora não haja confirmação. Convém dizer que Ashraf Ghani pertence à maioria Pastun, a mesma a que pertence a maioria dos Taliban, e por isso mesmo é visto como um traidor ainda maior ao aceitar presidir ao país em colaboração com as forças estrangeiras. Ashraf Ghani sabe o que aconteceu a um anterior Presidente, Mohammad Najibullah, igualmente da etnia Pastun, que foi torturado até à morte quando os Taliban tomaram o poder em 1996. Najibullah refugiou-se em instalações da ONU mas nem isso lhe valeu, tendo sido pendurado (ele e o irmão), depois de morto, num semáforo de trânsito junto ao Palácio presidencial em Cabul.

Não há nenhuma surpresa na chegada dos Taliban a Cabul. Talvez cedo demais em relação às previsões que vinham a ser feitas, mas apenas isso. Aliás, o avanço Taliban no Afeganistão traz à memória o avanço da organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Embora em contextos absolutamente diferentes, há aspectos muito semelhantes: a fragilidade das forças governamentais (a maioria fugiu e desertou); o armamento e recursos que o exército afegão foi deixando para trás e que aumentou o poder de fogo dos Taliban; e o apoio popular que os novos senhores foram recebendo de uma população farta de promessas não cumpridas e de dirigentes corruptos. Foi também assim em muitas cidades sírias e iraquianas (onde a população sunita estava farta do domínio xiita), embora muito rapidamente tenham percebido que a organização Estado Islâmico nada de bom tivesse para lhes oferecer. Vamos ver como será com os Taliban.

O que parece certo é que os Taliban aprenderam alguma coisa em relação aos primeiros anos que estiveram no poder e em que apenas obtiveram o reconhecimento internacional de Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Há vários meses que os Taliban desencadearam uma ofensiva diplomática preparando o terreno para a tomada do poder e para esse reconhecimento internacional que não tiveram durante o tempo em que anteriormente foram governo. Desta vez, o discurso oficial aponta para um novo poder, aparentemente mais suave e com menos sede de sangue. Condição, aliás, indispensável, para alargar a possibilidade de reconhecimento internacional. Os Taliban perceberam que não podem “herdar” um país destruído e isso também explica que (pelo menos até agora) Cabul não tenha assistido a combates que arruínem a cidade. Muito do que está a acontecer em Cabul, e a forma como está a acontecer, é também fruto das negociações – que nunca pararam – entre Taliban e Estados Unidos.

As vinganças serão inevitáveis, mas é bom entender que do lado do até agora poder afegão, as coisas também foram “feias”, havendo relatos de governadores e responsáveis políticos e militares que assassinaram prisioneiros Taliban à medida que surgiam as informações de avanço das forças dos “estudantes religiosos”. Quem assim procede não pode depois esperar clemência num terreno como o Afeganistão.

Seguir os porta-voz Taliban no Twitter ajuda a perceber este novo discurso Taliban, não sendo obviamente uma garantia de que aquilo que é dito vai ser cumprido. Há informação de uma transição em várias províncias em que os Taliban apenas impuseram novos líderes nas instituições e novas chefias nos serviços, mas em que convidaram a continuar aqueles que já lá trabalhavam. Muitas ONG’s foram convidadas a continuar a trabalhar no Afeganistão. Aqui chegados é também preciso entender que os Taliban não são uma força homogénea. Há muitas tribos, muitos “senhores da guerra” e muitas alianças altamente variáveis. A hierarquia de comando não funciona nos moldes em que funcionam as forças militares tradicionais ou até algumas milícias que desenvolvem acções de guerrilha.

Os países ocidentais que participaram na invasão do Afeganistão chegam a este dia, 20 anos depois, dando sinal de que não perceberam nada, nem sequer o momento em que deveriam sair do país. A saída envergonhada e à pressa, com as embaixadas a queimarem arquivos (a embaixada francesa foi relocalizada no aeroporto de Cabul; o embaixador e a bandeira dos Estados Unidos também já estão no mesmo aeroporto…), os helicópteros a fazerem sucessivas viagens entre a “zona verde” e o aeroporto de Cabul e os diplomatas a tentarem manter a pose, deixa a nu a impreparação para compreender uma realidade que quiseram moldar mas que, obviamente, não conseguiram.

Não sabemos se os Taliban vão impor o conservadorismo religioso que não respeita os Direitos Humanos ou se os novos tempos e a paz que prometem vão ser uma realidade diferente da que o Afeganistão viveu entre 1996 e 2001. Mas sabemos que depois da vergonha da fuga de Saigão, em 1975, principalmente os Estados Unidos já deveriam ter aprendido alguma coisa.

Por José Manuel Rosendo em meu Mundo minha Aldeia.

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