Não é fácil continuar este trabalho e conseguir sobreviver

16 de outubro 2010
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Mariam Rawi é representante da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão e estará este fim de semana em Lisboa na Conferência "Nato para quê?". Actualmente, vive e dá aulas no Paquistão, onde as militantes da RAWA no exílio são um alvo dos fundamentalistas.

Passaram nove anos desde as primeiras bombas da NATO sobre o Afeganistão. Como vês a situação hoje?

Com o passar dos anos ficou mais claro que esta guerra - feita em nome da luta contra o terrorismo, dos direitos das mulheres ou da democracia no Afeganistão - apenas serviu para alcançar os interesses estratégicos e políticos dos EUA e outros governos ocidentais.

Apesar da saída dos talibãs do governo, vieram forças ainda piores que eles (de novo os grupos fundamentalistas religiosos) com o apoio das tropas e governos da NATO. Por isso, o sofrimento das pessoas continua tal como era antes.

E nestes nove anos de ocupação, em todas as aldeias e províncias afegãs, a população sofre diariamente os ataques aéreos e os raids que causam muitas vítimas civis, entre elas muitas mulheres e crianças.

A segurança continua a ser o maior problema para a esmagadora maioria da população. As mulheres não se sentem seguras, ainda se escondem por baixo das suas burkas e ainda cobrem o rosto. Há muitos casos de violência contra mulheres: violações, raptos, ataques na escola a professoras e estudantes... Isto acontece porque os senhores da guerra, por exemplo os grupos militares da Aliança do Norte, estão no poder. 

Para além deste problema de segurança, o Afeganistão tornou-se o segundo maior país do mundo no que respeita à corrupção. Se chegaram milhões de dólares ao país para fazer algo de positivo, houve biliões que foram parar aos bolsos de membros do governo, senhores da guerra ou traficantes de drogas e que não chegaram ao nosso povo.

Também vimos que nestes nove anos, o Afeganistão produziu a maior quantidade de ópio no mundo inteiro. Mas há outros sinais chocantes de abuso sobre os direitos das pessoas: não há sinais de democracia nem de liberdade de expressão, mas existem tensões entre etnias e muitos problemas sociais e económicos sentidos no quotidiano.

Qualquer afegão, seja homem ou mulher, não pode estar seguro da sua  sobrevivência no dia-a-dia.

Com um narco-governo no poder, os talibãs a ganhar força e as bombas da Nato a cair, onde pode estar a solução para o Afeganistão sair desta situação trágica?

Primeiro que tudo, é preciso dizer que tanto estes criminosos que estão agora no governo como os terroristas que agora estão nos movimentos talibãs, são criaturas concebidas pelos EUA e países ocidentais, dos quais receberam apoio militar, financeiro e político durante a guerra contra a ocupação soviética, especialmente pela CIA.

Por isso acreditamos que o aconteceu depois do 11 de Setembro, como disse atrás, fez parte do objectivo dos EUA em ter presença militar no Afeganistão. Julgamos que a actual ocupação  também é do interesse deles, e precisam duma justificação para essa presença: serão os talibãs, os terroristas, os insurgentes de que falam.

Creio que neste momento a única solução para a crise afegã passa pela retirada de todas as tropas estrangeiras, o que inclui as dos EUA e dos países membros da NATO. 

Para além disso, para reduzir o poder dos "senhores da guerra" fundamentalistas, é muito importante que os seus líderes e os seus criminosos que nos últimos 30 anos responsáveis pela violação dos direitos das pessoas e pela morte de milhares de pessoas, sejam levados a um tribunal internacional que faça justiça. Por isso precisamos do apoio da comunidade internacional, das pessoas que em todo o mundo amam a justiça e a liberdade.

O terceiro passo importante tem a ver com os países vizinhos - o Irão e o Paquistão, cujos regimes sempre tiveram um papel negativo de interferência no Afeganistão, apoiando os grupos fundamentalistas. Quaisquer interferências, tal como os seus fantoches, devem ser afastados da cena política afegã para pôr um ponto final nesta situação.

Esta é a única solução que dá uma oportunidade às pessoas pró-democracia e à liberdade de expressão. Há muitos grupos, indivíduos e movimentos que estão a voltar a mostrar ao povo que querem trabalhar em prol da democracia, da independência e da justiça social no Afeganistão.

A actividade duma organização feminista no Afeganistão exige coragem, mas nem sempre essas dificuldades são conhecidas cá fora. Queres dar alguns exemplos?

Desde o início da actividade da RAWA, em 1977, como único grupo feminista no Afeganistão, sempre enfrentámos problemas de segurança. A nossa líder fundadora, Meena, foi assassinada no Paquistão. Mais tarde, as nossas militantes foram seguidas, obrigadas a mudar os nomes e identidades, a esconder sempre a cara com burqa para não serem reconhecidas. Até nos projectos que desenvolvemos não podemos usar o nome da RAWA. E há outras medidas de segurança que temos que adoptar, isso sempre aconteceu.

Mas a comunidade internacional acha que com a presença dos Estados Unidos tudo mudou, que as mulheres são livres e organizações como a RAWA têm direitos. Mas isso não é verdade. 

Ainda não conseguimos trabalhar livremente e em paz. Não temos qualquer escritório aberto. Quando vendemos as nossas publicações, as activistas são ameaçadas para não o fazerem. Não podemos trabalhar abertamente nos nossos projectos nas escolas, orfanatos e outros centros para mulheres. Isto traz-nos muitos problemas. Não só à RAWA, mas a qualquer voz que resista aos senhores da guerra, à ocupação, aos talibãs e à administração de Karzai. Não é fácil continuar este trabalho e conseguir sobreviver.

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