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"Não haver exclusividade no SNS custa muitos milhões de euros por ano" | Bloco de Esquerda

“Falta de exclusividade no SNS custa centenas de milhões por ano”

Nesta entrevista, o deputado Moisés Ferreira explica a necessidade de profissionais em regime de exclusividade no Serviço Nacional de Saúde e desmonta a proposta do Governo da “dedicação plena”, que não passa de um regime de aumento do horário de trabalho.

Nas negociações para o Orçamento do Estado de 2022, o Bloco insistiu na criação de um regime de exclusividade para os profissionais do SNS, como já tinha feito no ano passado. O Governo voltou a recusar a medida e propôs um regime de aumento do horário de trabalho e sem exclusividade, a que chamou “dedicação plena” para criar a sensação de que se estava a aproximar da proposta bloquista. Moisés Ferreira explica as diferenças entre os dois regimes e alerta para os custos que os contribuintes pagam pela sangria de profissionais para o setor privado de saúde.


Porque é que o SNS precisa de profissionais de saúde em exclusividade?

A exclusividade é muito importante para o SNS para todos os grupos profissionais por duas razões. A primeira é que o SNS precisa de ter maior capacidade de atração de profissionais. Por exemplo, nós ainda recentemente tivemos os concursos para contratação de médicos de família e também para contratação de médicos de especialidades hospitalares e esses concursos ficam cada vez mais desertos.

Aqui na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde existe uma maior carência de médicos de família, 50% das vagas ficaram por ocupar. E não é por falta de médicos, porque esses médicos tinham acabado de ser formados no próprio SNS. Mas, por alguma razão, eles consideram que as condições de trabalho, as condições de carreira, as condições remuneratórias não são boas no SNS e, portanto, procuram fazer a sua vida noutro sítio qualquer. E quem fala de médicos fala de outras profissões. Aliás, durante a pandemia foi dito várias vezes até pelo Governo que já era difícil nesse momento contratar enfermeiros para o SNS. E, também no dia-a-dia, nós sabemos de casos, por exemplo, de assistentes operacionais  - que já deveriam ser  técnicos auxiliares de saúde - que entre ficar no SNS ou encontrar uma outra profissão um outro trabalho fora do SNS, mas que é salário mínimo na mesma e que exige menos trabalho, menos esforço físico, menos horas, eles vão para fora do SNS.

A exclusividade é importante ainda por uma segunda razão, que é a da mais que necessária, mais que urgente separação entre público e privado, no que toca à saúde. Não podemos continuar a ter um SNS em que os seus recursos são sangrados pelo privado e, muitas vezes, utilizando uma promiscuidade que existe, de profissionais que ora estão no público, ora estão no privado, com um pé num sítio, com um pé noutro sítio, e isso, muitas vezes utilizam para desviar os utentes, desviar os recursos, etc.

O que separa as propostas do Bloco de Esquerda e do Governo?

O Governo propõe uma coisa que não é a exclusividade, chamou-lhe “dedicação plena”. E aqui a diferença não é meramente de nome ou de semântica, a diferença é mesmo de conceito. Enquanto o Bloco prevê uma exclusividade que é uma efetiva exclusividade, ou seja, os médicos, enfermeiros, técnicos superiores, etc, que fiquem em exclusividade trabalham apenas para o SNS com incentivos adicionais, o Governo o que propõe é que os profissionais trabalham o horário de trabalho completo, mas depois podem continuar a trabalhar nos grupos privados dessa vida por esse país fora.  Ora isso não é uma exclusividade, isto é trabalhar num sítio e poder trabalhar no outro. E isso é incompatível com o conceito de exclusividade. Depois, o Governo não avança e não concretiza minimamente aquilo que são os incentivos. O Bloco de Esquerda na sua proposta concretiza dois deles: uma majoração na remuneração de 40% e a possibilidade de redução do horário de trabalho a partir de uma certa idade. O Governo não diz nada disso. Diz que depois em decreto lei posterior há-de ver essas questões. Portanto, não sabemos sequer que tipo de incentivos ou se existirão incentivos na proposta do Governo.

E depois o Governo diz outra coisa, que o regime de dedicação plena que eles propõem teria um aumento do horário de trabalho dos profissionais e o consequente aumento da remuneração. Ora, isso na verdade não é um regime de exclusividade, não é um regime de dedicação plena - seja lá isso o que seja -, é um regime de aumento do horário de trabalho dos profissionais. Porque se não prevê incompatibilidades para trabalhar no privado e eles podem continuar a trabalhar no privado, se não prevê incentivos e deixa isso para sabe-se lá quando, e a única coisa que prevê é que os profissionais vão trabalhar mais horas e ganhar mais por isso (também só faltava que não ganhassem mais por mais horas trabalhadas), isto não é nenhum regime de exclusividade.

O que parece é que o Governo quis criar um regime de aumento do horário de trabalho, mas por conveniência negocial com o Bloco de Esquerda decidiu chamar-lhe “dedicação plena” para parecer que estava ir ao encontro das propostas do Bloco de Esquerda,  quando na verdade não se moveu um milímetro para ir ao encontro de um mínimo de exclusividade no Serviço Nacional de Saúde.

Quais são as propostas do Bloco?

O regime que o Bloco de Esquerda propôs para a exclusividade não é novo, não apareceu a última da hora, aliás é o mesmo que já apresentámos no Orçamento do Estado do ano passado, o de 2021. O Governo até já o conhecia há um ano, nós mantivemos exatamente a mesma proposta: o regime de exclusividade com dois níveis, obrigatório e opcional. Obrigatório para quem tem cargos de chefia no Serviço Nacional de Saúde, porque é preciso fazer essa separação entre público e privado e acabar com a promiscuidade que existe e que muitas vezes drena os recursos do SNS. E opcional para todos os outros profissionais que queiram aderir ao regime de exclusividade.

Pela sua própria definição, quem adere ao regime de exclusividade trabalha unicamente no SNS em exclusividade, como o próprio nome indica. E para isso tem incentivos adicionais que estão garantidos quando aderem ao regime de exclusividade. Dois dos incentivos que o Bloco de Esquerda previa claramente é a majoração em 40% da sua remuneração e a possibilidade de redução do horário de trabalho sem penalização a partir de uma certa idade, 50 ou 55 anos.

Quais são os impactos desta medida?

Dependeria de quantos trabalhadores quisessem aderir. Se o incentivo é de 40% da remuneração, é fácil de calcular. O que também é fácil de calcular é o que o SNS gasta por não ter exclusividade. E gasta muito mais do que gastaria se tivesse exclusividade. Por uma razão muito simples: o SNS tem um princípio, que é um princípio bom: ninguém fica sem cuidados de saúde. E por isso, se o SNS dá resposta é o SNS que o faz, se o SNS não dá resposta, o SNS paga fora para que outros possam dar resposta às pessoas. Neste princípio, das duas uma: ou o SNS é capaz de fazer as coisas e faz bem e faz de forma mais eficaz e faz sem margens de lucro, e portanto bem e mais barato, ou então não é capaz de fazer as coisas e vai pagar mais caro para que outros façam.

Ao não termos exclusividade, temos incapacidade de atrair médicos e com a incapacidade de atrair médicos temos que contratar mais fora porque dentro do SNS não temos capacidade de fazer as consultas as cirurgias que devemos estar a fazer, isso é o mesmo que dizer que por não ter exclusividade estamos a pagar cada vez mais ao privado para fazer aquilo que o SNS deveria fazer. Na contabilidade sobre os custos da exclusividade deve também contar nessa equação as despesas e os custos que é o SNS não ter exclusividade. E são muitas centenas de milhões de Euros por ano por não ter exclusividade.