Que se passa em França?

porJorge Costa

19 de setembro 2023 - 17:44
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A situação em França tem um aspeto pouco sublinhado entre nós, porque é excecional na União Europeia e incómodo para ela. O crescendo de lutas fez aumentar o número de sindicalizados e remeteu o Partido Socialista local à insignificância. O país tem hoje a esquerda mais forte da Europa.

À pergunta do título, qualquer pessoa mais ou menos atenta às notícias saberia responder o mínimo: coletes amarelos, greves contra o aumento da idade da reforma, revoltas massivas contra assassinatos cometidos pela polícia. Muita bala de borracha e caixotes do lixo em chamas. Sobre tudo isso, paira a ameaça da extrema-direita, sempre mais próxima da conquista do governo.

Há todavia uma parte da realidade francesa que é deixada numa sombra persistente, embora faça da França uma verdadeira exceção, uma exceção incómoda para o sistema europeu e portanto escondida. Essa exceção é o crescendo das lutas sociais num país em que aumenta o número de sindicalizados e onde o Partido Socialista, castigado por mau governo, foi relegado à insignificância. A França tornou-se o país com a esquerda mais forte da Europa. À cabeça do bloco popular mobilizado está o partido França Insubmissa, que saiu de uma posição minoritária para hoje liderar a oposição. O seu líder, Jean-Luc Mélenchon, ficou a apenas 1% de ultrapassar Marine Le Pen nas presidenciais do ano passado e conseguiu uma coligação que junta 133 deputados (logo atrás do partido do presidente), juntando insubmissos, verdes, comunistas e socialistas remanescentes, eleitos sob um programa de rutura com as imposições neoliberais europeias que definem o governo Macron.

Na primavera, é bem sabido, decorreu a maior mobilização popular dos últimos 50 anos em França, contra o aumento da idade da reforma. Uma longa série de greves levou às ruas milhões de pessoas. Entre manobras parlamentares, repressão brutal e assédio à esquerda (como se a "ameaça à democracia" fosse a França Insubmissa e não o partido de Le Pen), no final do primeiro round, o presidente conseguiu manter a reforma. Mas os últimos doze meses confirmaram duas certezas com grandes consequências para a Europa.

Em primeiro lugar, as políticas neoliberais de desmantelamento da proteção social e de concentração da riqueza conduzem forçosamente a derivas autoritárias e à repressão. Já se vira isso contra o movimento dos “coletes amarelos”, contra a ação ecologista, contra as greves; em junho, o assassinato de um jovem por um piquete policial, seguido de prolongadas revoltas em todas as regiões de França, teve como resposta de Macron uma verdadeira militarização do país, um apelo “à ordem” que visa manter intocadas todas as discriminações sociais e reforçar a impunidade do racismo policial. A esquerda respondeu firmemente, recusando a onda securitária. Mas está cada vez mais evidente a convergência reacionária em curso, entre o campo presidencial e a direita extrema sob a mesma linha autoritária: os trabalhadores que paguem a crise - à força de casse-tête, naturalmente.

Segunda conclusão: há caminho pela esquerda. A força da exceção francesa vem de um percurso de coerência no combate contra as políticas liberais (venham elas da direita, do extremo-centro ou mesmo da “família socialista”, como é o caso em Portugal) e da ambição de unificar, em torno de respostas verdadeiras à vida das pessoas, um campo político e social que lute pela maioria.

A primavera francesa deixou um presidente isolado, dependente da direita ultraliberal e um confronto por resolver. Passado o verão, com novas lutas francesas a chegarem aos nossos ecrãs - no próximo sábado haverá manifestações da esquerda e dos sindicatos, contra a violência policial e o racismo, pelas liberdades públicas - estaremos a assistir ao mais avançado dos combates travados na Europa contra as políticas liberais, que são os únicos combates que podem construir maiorias populares contra a extrema-direita.

Artigo publicado na edição de 14 de setembro do semanário O Regional, de São João da Madeira

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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