E levar o país a sério?

porJorge Costa

15 de novembro 2023 - 17:12
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Há um Portugal que vive nos braços de facilitadores bem relacionados e há outro que só conhece dificuldades. No primeiro, qualquer lei ou portaria pode sofrer um jeitinho em nome de investimentos; no segundo, há muito aperto e poucos “apoios”, muitos estudos e avaliações e poucas decisões.

1. No momento em que escrevo, há nevoeiro cerrado. Um governo demissionário com plenos poderes, um inquérito judicial a cada hora mais periclitante - erros do Ministério Público, recusa pelo juiz de instrução das medidas de coação propostas, dilúvio de violações do segredo de justiça, uma Procuradora-Geral da República que não aparece nem detalha, perante o povo, as suspeitas que fizeram cair o primeiro-ministro, como se a Justiça não devesse satisfações à Democracia. Insegura neste chão, a direita prefere virar-se para… o governador do Banco de Portugal! Parece que agora a novidade é que Centeno é do PS. Dois ministros de António Costa competem pela sucessão, ambos evitando, enquanto candidatos, qualquer vestígio de crítica às opções da maioria absoluta. Nesta névoa, o colapso das urgências hospitalares, a falta de professores ou a crise da habitação parecem esfumar-se. E no entanto…

2. Seja qual for a consistência do processo judicial e o seu desenlace, o que vai surgindo da investigação judicial ilustra o regime de promiscuidade e privilégio que o Bloco de Esquerda tem denunciado ao longo dos anos. Há um Portugal que vive nos braços de facilitadores bem relacionados e há outro que só conhece dificuldades. No primeiro, qualquer lei ou portaria pode sofrer um jeitinho em nome de investimentos; no segundo, há muito aperto e poucos “apoios”, muitos estudos e avaliações e poucas decisões. Como salientou Mariana Mortágua, esquerda não é isto. Há uma esquerda de confiança que sempre se bateu contra a promiscuidade entre a política e os negócios.

Ao longo dos últimos anos, o Bloco fiscalizou e denunciou a atuação destes intervenientes: os projetos do lítio ou do hidrogénio, impingidos como “de interesse nacional” e consumados por figuras com mau currículo na proteção daquele. Em 2016, criticamos a contratação pelo governo do consultor Lacerda Machado; em 2018, pedimos a demissão do presidente da APA por complacência com privados poluidores; em 2019, promovemos um inquérito parlamentar aos favores à EDP e vale recordar que, quando Manuel Pinho era ministro, Lacerda Machado estava com Mexia nos órgãos sociais da EDP e Vítor Escária era assessor económico de Sócrates; anos depois, pago pela EDP, assinava um parecer apoiando as opções de Pinho. Em 2021, expusemos a atuação do ministro Matos Fernandes face à venda de seis barragens do Douro. Nunca os deixámos em paz.

3. Em maio passado, fiz aqui um ponto da situação: “este governo faz girar a porta entre política e negócios, alimenta o facilitismo, bloqueia a fiscalização do governo pelo parlamento, festeja estatísticas que contrastam com a realidade da vida, chama os serviços secretos porque sim. É o deslumbramento do poder absoluto, a arrogância e a negligência, bem visíveis na ação do primeiro-ministro perante tudo isto. Resultado: corrosão da democracia, fermento para a extrema-direita”. Confesso que, mesmo cético, não antevia tão desgraçado desfecho, apenas meio ano depois.

Na bruma sulfurosa destes dias, cabe uma palavra de esperança. Há uma esquerda de confiança, que sempre contou para colocar a direita em minoria e afastá-la do governo. Essa esquerda prova que há alternativa e responde pelo que verdadeiramente importa: os salários e as pensões que deixaram de pagar o básico, o tormento da habitação, a falta de médicos e professores, as políticas de falsa transição ambiental. Só com respostas verdadeiras se pode travar o passo à direita extrema.

Artigo publicado no semanário O Regional, de São João da Madeira

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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