Das minhas lembranças do 26 de Novembro de 75 – para nós começou um dia depois –, retenho que, na Comissão de Moradores de Pedrouços, onde eu estava, nas caves da Gelmar, uma fábrica de embalamento de peixe ali ao lado, e também na zona do Serviço Militar Postal, perto da Torre de Belém, juntaram-se muitas centenas de pessoas para barrar o golpe da direita. Sabia-se desde a véspera que a coluna dos tanques dos Comandos da Amadora, do major Jaime Neves, iria passar por aquela zona e era forçoso criar resistência. À última da hora, os militares progressistas que enquadraram estas ações e alguns responsáveis do PCP desmobilizaram tudo aquilo. Sobrou apenas a raiva. Ainda assisti, na Calçada da Ajuda, aos tanques passarem por cima de uma ingénua barricada levantada por militantes da UDP, com o Francisco Martins Rodrigues em destaque. A seguir, foram os tiros e a fuga dos civis, precedendo o ataque dos Comandos à Polícia Militar, que não estava sequer sublevada, mas que era afeta à esquerda.
Estávamos já em Estado de Sítio, proclamado desde a véspera, 25 de Novembro. A concentração do comando militar no Presidente da República, Francisco Costa Gomes, no General Eanes e na direita militar teve como pretexto a sublevação dos paraquedistas que ocuparam várias bases aéreas numa resposta anarquizante a sucessivas provocações feitas pela hierarquia militar, corte de vencimentos e dissolução da força. Essa iniciativa, mais tarde acompanhada pelo levantamento do RALIS, em Beirolas, foi apresentada como um golpe em curso, vindo da extrema-esquerda, a que havia que responder com a "normalização da estabilidade militar". Quase cinquenta anos depois, ninguém consegue seriamente sustentar que estivesse em movimento um golpe de Estado da esquerda político-militar. Não tinha plano, não tinha comando, não tinha preparação nem logística. Não tinha nada a não ser a defesa isolada de uma ou outra unidade. E até fez a desmobilização civil. À direita tudo estava preparado por Eanes e, a norte, Pires Veloso, com as ligações políticas a PSD e PS.
O objetivo, como se viu, foi a detenção em Custóias de um numeroso grupo de Militares de Abril, decapitando a esquerda militar, sob nenhum pretexto válido que não fosse a "limpeza da tropa". Nesse sentido, o 25 de Novembro foi um golpe intramilitar de direita. Não teve consequências imediatas na estrutura do poder político. Presidente da República, Constituinte, Conselho da Revolução, tudo seguiu. O único corpo de delito foi a extinção do Comando Operacional do Continente (Copcon), onde pontificava Otelo.
Nos dias seguintes, a esquerda radical desafiou o recolher obrigatório e o Estado de Sítio. Editamos um boletim chamado mesmo de Estado de Sítio, recebido como se fosse um êxito mediático. Enchemos o Campo das Cebolas para um protesto antifascista, sob o pretexto de uma jornada de solidariedade com UCPs do Alentejo, que vieram vender alguns dos seus produtos. A imprensa da época falava em dezenas de milhares de pessoas; nós, mais afoitos, falámos de cem mil. Inscrevemos palavras de ordem pela libertação dos militares presos em muitos muros de Lisboa. Honramos camaradas mortos pelos Comandos, Albertino Bagagem, da PM, e Joaquim Leal, na Amadora.
No dia 6 de dezembro, já sem Estado de Sítio, a UDP abarrotou o Pavilhão dos Desportos num comício antifascista, na tónica do que tinham sido os últimos meses, mesmo antes do golpe militar. Dois anos depois do golpe fascista de Pinochet, gritávamos que "Portugal não será o Chile da Europa!". Esse era o receio da época: o do regresso ao fascismo, pretendido pela rede bombista de Spínola, pelos separatistas dos Açores e da Madeira, pela extrema-direita militar de Jaime Neves, entre outros.
A historiografia atual valoriza o papel de Melo Antunes e de outros oficiais democratas, que tiveram um papel de compromisso com Costa Gomes e Ramalho Eanes (com a NATO sempre à espreita) e impediram uma saída reacionária como desfecho da inventona da esquerda (expressão em voga ao tempo) e da intentona sucedida da direita. Não se pode negar o papel dos chamados moderados, mas a centralidade do processo estava noutro lado: no Povo. O poder político-militar não teria condições para subjugar o povo das principais cidades, mesmo com a manipulação reacionária do campesinato do norte e do centro do país. O 25 de Abril estava vivo.
Só isso permite explicar a posterior aprovação de uma Constituição que defendia a transição para uma sociedade sem classes e as muitas nacionalizações dos grupos capitalistas que se confirmaram. O golpe do 25 de Novembro não conseguiu impedir a Constituição contra a qual o CDS votou e que, apesar de revista sete vezes, continua a ser o foco dos ataques de toda a direita, durante quase cinquenta anos.
Falem-me do 25 de Novembro que eu falo da Constituição. Eu vi este povo a lutar.