2016, o ano mais quente de sempre que já não é notícia

Dos 17 anos mais quentes desde que há registos, só um não pertenceu ao século XXI. Alterações climáticas são a constante mais evidente num tempo de instabilidade fortemente associada à crescente degradação material do planeta. Por João Camargo.

30 de December 2016 - 15:35
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Urso polar num iceberg a derreter.

O ano que termina, 2016, é o ano mais quente desde que há registos, embora isso dificilmente seja já novidade, já que os dois anos anteriores bateram exactamente esse mesmo recorde. As alterações climáticas são a constante mais evidente num tempo de instabilidade social, económica e política fortemente associadas à crescente degradação material do planeta. Em 2016 terminou ainda uma sequência sem precedentes de meses consecutivos de recordes históricos de temperaturas: entre Maio de 2015 e Agosto de 2016 todos os meses foram os mais quentes alguma vez registados, com o último a ser o mês mais quente de sempre. Dos 17 anos mais quentes desde que há registos, só um – 1998 – não pertenceu ao século XXI.

As consequências físicas e climáticas deste pico de temperatura sentem-se um pouco por todo o planeta:

  • Na Austrália ocorreu o maior branqueamento de corais alguma vez observado, com 93% da Grande Barreira de Coral na Austrália a aproximar-se da morte no verão no Hemisfério Sul, devido às variações da temperatura do Oceano Pacífico;
  • Nos Estados Unidos quadruplicou o número e a duração de clusters de tornados e o aumento do número de tornados por cluster, isto é, há mais tornados, estão mais concentrados e duram mais tempo,
  • Houve uma quebra acentuada das chuvas em África e em particular na África Subsahariana: na Etiópia há 10 milhões ameaçados pela fome e mesmo no Lesoto, país em altitude e com precipitação acentuada, a seca ameaça 700 mil pessoas.

Um dos sinais mais preocupantes do agravamento das alterações climáticas é a degradação das zonas polares: no mês passado, a extensão de gelo no Ártico foi a mais pequena desde que se começaram a registar as imagens por satélite em 1979. A perda de gelo no Ártico é de cerca de 40% quando comparado com o final da década de 70 e o início dos anos 80. Em resposta a esta perda de gelo, os ecossistemas oceânicos próximos estão a sofrer importantes impactos, nomeadamente na produção de algas, que está 50% acima do que era em 1997, o que altera toda a cadeia alimentar do Ártico. Pela segunda vez, abriu-se a Passagem do Nordeste no Pólo Norte, e o cruzeiro de luxo Crystal Serenity atravessou-a. Em Dezembro a onda de calor no Pólo Norte colocou as temperaturas 20 a 30ºC acima daquilo que deveria estar nesta altura do ano (quando não há sol a incidir sobre o Pólo), o que faz com que mesmo no inverno o gelo continue a derreter.

A perda de gelo no Ártico é de cerca de 40% quando comparado com o final da década de 70 e o início dos anos 80. Em resposta a esta perda de gelo, os ecossistemas oceânicos próximos estão a sofrer importantes impactos, nomeadamente na produção de algas, que está 50% acima do que era em 1997, o que altera toda a cadeia alimentar do Ártico.

Ultrapassando-se todas as projecções prévias, 12% do gelo da Gronelândia está a derreter, com a projecção de um impacto ainda superior sobre a subida do nível médio do mar.

O elefante escondido das alterações climáticas, a Antártida, registou em Dezembro uma perda de 3,84 milhões de quilómetros quadrados comparados com a média dos 30 anos entre 1981 e 2010. Perdeu um área de gelo do tamanho da Índia.

2016 foi o primeiro ano passado todo acima das 400 partes por milhão de dióxido de carbono na atmosfera, concentração nunca registada nos últimos 800 mil anos. Além disso, em Fevereiro e Março a temperatura média ultrapassou a subida de 1,5ºC prevista no acordo de Paris. Com o efeito combinado das alterações climáticas e do El Niño, em Fevereiro a temperatura média esteve 1,63ºC acima da era pré-industrial e em Março a temperatura média esteve 1,54ºC acima da era pré-industrial.

Em termos de emissões de dióxido de carbono, 2016 teve um aumento de emissões de 0,2%, voltando a subir em relação a 2015, em que as emissões estiveram estacionárias. É uma redução importante no aumento das emissões, quando comparamos com a subida cavalgante de 3,5% ao ano das emissões na década 2000-2010 e de 1,8% entre 2006 e 2015. Por outro lado houve uma explosão nas emissões de metano, identificada em particular desde 2007 e com acelerações em 2014 e 2015, que põe em perigo os esforços para reduzir as emissões de dióxido de carbono. As emissões de metano para a atmosfera têm fontes variadas, mas um estudo publicado na Nature revela que a indústria dos combustíveis fósseis subavaliou a sua produção de metano entre 60% e 110%. 

Cientistas da Universidade de Cornell já tinham feito uma avaliação das perdas de metano para a atmosfera na actividade de produção de gás de xisto por fracking, assim como da produção petrolífera e da produção de carvão e concluíram que houve uma gigantesca omissão por parte das petrolíferas. O boom do gás dos Estados Unidos e do Canadá, assim como a expansão das minas de carvão da China serão dos principais responsáveis pelo boom das emissões de metano, acompanhando a produção pecuária intensiva e a produção de arroz. Em 2016 também se quantificou pela primeira vez a produção de metano a partir de barragens e os números são surpreendentes, colocando um não definitivo ao estatuto da energia hidroeléctrica como “renovável”. A concentração de metano na atmosfera em 2016 é de 1830 partes por bilião (mil milhões), quando na era pré-industrial era de 722 partes por bilião.

A 4 de Novembro entrou em vigor o Acordo de Paris, a dias da realização da COP-22 de Marrakesh e das eleições dos Estados Unidos. Tal foi possível apenas devido ao forte incentivo dado pela ratificação conjunta dos maiores emissores de gases com efeito de estufa do mundo – Estados Unidos e China. A China, seguindo o exemplo de 2015, voltou a reduzir as suas emissões em 2016.

Os Estados Unidos são o maior emissor histórico de gases com efeito de estufa, isto é, o país com maior responsabilidade no mundo sobre as alterações climáticas, e são actualmente também o maior produtor mundial de combustíveis fósseis. A Rússia é o maior emissor até ao momento a não ter ratificado o Acordo de Paris

Os Estados Unidos são um país central para a questão das alterações climáticas: são o maior emissor histórico de gases com efeito de estufa, isto é, o país com maior responsabilidade no mundo sobre as alterações climáticas, e são actualmente também o maior produtor mundial de combustíveis fósseis, em particular por causa revolução do fracking. A Rússia é o maior emissor até ao momento a não ter ratificado o Acordo de Paris. Antes mesmo da Cimeira do Clima foi assinado em 2016 um acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa  do tráfego aéreo internacional (não contemplado, em conjunto com o comércio marítimo e as forças militares no Acordo de Paris), que volta a insistir no falhado comércio de créditos de carbono, e um acordo para eliminar progressivamente as emissões de outro gás com efeito de estufa – os hidrofluorocarbonetos – principalmente presente nos ares condicionados.

Poucos dias depois do início da Cimeira, Donald Trump, assumido negacionista das alterações climáticas, foi eleito presidente dos Estados Unidos. A sua promessa de rasgar o Acordo de Paris, feita durante a campanha eleitoral, passou a ser uma ameaça permanente sobre o diálogo político das alterações climáticas. As dúvidas foram-se dissipando com as escolhas ministeriais do novo presidente dos Estados Unidos: escolheu Myron Ebell, negacionista militante das alterações climáticas como responsável pela transição do Departamento de Protecção Ambiental (EPA), nomeou Rick Perry, outro negacionista e ex-Governador do Texas para liderar o Departamento de Energia (que o mesmo Perry assumiu querer fechar nas presidenciais de 2012) e a cereja no topo do bolo: Rex Tillerson como Secretário de Estado (Ministro dos Negócios Estrangeiros e responsável pela política externa dos EUA).

Tillerson era até à data o presidente da ExxonMobil, a maior petrolífera privada do mundo. 2016 foi o ano em que vários procuradores de vários estados dos Estados Unidos aceitaram uma queixa colectiva de centenas de cidadãos dos EUA contra a ExxonMobil por ter conhecimento das alterações climáticas pelo menos desde 1969 e por ter financiado directamente grupos negacionistas para desmentirem cientistas e bloquearem as respostas políticas necessárias ao combate às alterações climáticas. A ligação directa de Tillerson a Vladimir Putin, a intervenção russa na campanha eleitoral americana e uma estratégia conjunta EUA -Federação Russa para a exploração hidrocarbonetos no Ártico parecem ser o motivo que levou o presidente cessante Barack Obama (que teve uma acção mais que oportunista sobre a questão das alterações climáticas, incentivando acordos internacionais enquanto expandia a produção de combustíveis fósseis no país) a anunciar a interdição da exploração de gás e petróleo no Ártico.

A vitória temporária dos “protectores da água” – que desde Abril estiveram acampados em Standing Rock para travar o North Dakota Access Pipeline – foi conseguir que Obama recusasse a autorização para uma empresa privada (propriedade em parte de Donald Trump e de Rick Perry) continuar a construção de mais um oleoduto dentro de uma reserva índia. Uma batalha de desobediência civil com poucos precedentes nos últimos anos, protagonizada pelas comunidades indígenas dos Estados Unidos, representou mais um importante avanço no bloqueio de infraestruturas que garantem a continuação do modelo de combustíveis fósseis.

A vitória temporária dos ativistas que desde Abril estiveram acampados em Standing Rock para travar o North Dakota Access Pipeline foi conseguir que Obama recusasse a autorização para uma empresa privada construir mais um oleoduto numa reserva índia. Uma batalha de desobediência civil com poucos precedentes nos últimos anos, protagonizada pelas comunidades indígenas dos Estados Unidos.

No final de 2015 Obama tinha suspenso a construção de outro oleoduto – o Keystone XL das areias betuminosas do Canadá, atravessando todo o continente americano até chegar ao Golfo do México – que Trump prometeu ressuscitar. Para isso conta com o apoio do muito popular e igualmente oportunista primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau que, apesar de se reivindicar de ser engajado na luta contra as alterações climáticas, apoia vários projectos de combustíveis fósseis relacionados com a catastrófica exploração das areias betuminosas na Alberta. O oleoduto Kinder Morgan, aprovado recentemente pelo primeiro-ministro, será um dos exemplos mais acabados desta política de facto consumado e de instalação durante as próximas décadas da indústria petrolífera, e que maior resistência social irá provocar.

Desde as eleições nos Estados Unidos, a intimidação a cientistas climáticos tornou-se uma constante, com o presidente-eleito a ameaçar fechar o departamento de alterações climáticas da NASA, um dos maiores centros de investigação na matéria no mundo, e a ameaçar deixar de recolher os dados climáticos com os satélites americanos. Mesmo dentro dos Estados Unidos, existem já declarações de insubordinação institucional em relação ao novo presidente. A Califórnia e Nova Iorque já afirmaram que vão manter uma política de cortes de emissões gases com efeito de estufa, independentemente da política federal (que Trump já anunciou que será de revitalização de todas as indústrias mais sujas, com o carvão à cabeça) e o governador da Califórnia, Jerry Brown, já anunciou que se Trump desligar os satélites para recolher os dados climáticos, a Califórnia irá lançar os seus próprios satélites.

Na Europa, a retórica das petrolíferas continua a fazer caminho e a União Energética tenta consolidar o gás como energia futura, impedindo a rápida transição para as renováveis através da construção de infraestruturas, como gasodutos, terminais LNG. Os conflitos militares no Norte de África e no Médio Oriente procuram abrir caminhos para mais combustíveis fósseis importados e espalhados pela Europa, para poder reduzir as importações da Rússia. As emissões desprezadas e escondidas de metano são uma razão mais do que suficiente para abandonar a ideia criminosa que é a transição para o gás.

Paradoxalmente, é a acção dos estados centrais e das organizações regionais como a União Europeia que ainda garante sobrevivência da indústria dos combustíveis fósseis. Em 2016, investidores responsáveis pela gestão de 5,2 biliões de dólares (empresas financeiras, fundos de pensões, governos locais e regionais) concordaram em desinvestir dos combustíveis fósseis. Em 2015 foram investidos 288 mil milhões de euros em novos projectos de renováveis, 70% de todo o dinheiro investido na produção de energia, suplantando o investimento combinado de fósseis e nuclear, o que permitiu instalar em média 500 mil painéis solares por dia.

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