O “apoio histórico” dos 70 milhões para a Cultura: um mau argumento de ficção

05 de August 2020 - 18:58
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A última entrevista da Srª Ministra da Cultura foi profundamente esclarecedora... A Cultura ganha agora mais 70 milhões, mas o barco continua a afundar e não é atirando mais dinheiro de forma avulsa que se vai conseguir tapar os buracos. Artigo publicado em Marta Moreira - de cabeça cheia

O “apoio histórico” dos 70 milhões para a Cultura: um mau argumento de ficção
O “apoio histórico” dos 70 milhões para a Cultura: um mau argumento de ficção

A última entrevista da Srª Ministra da Cultura foi profundamente esclarecedora. Para quem acompanha este assunto apenas pelo que vai sendo transpirado na agenda mediática, a situação calamitosa que se vive na Cultura pode parecer um assunto complexo, com muitos meandros difíceis de seguir. Para quem conhece de perto a realidade que se vive no sector cultural, os problemas que se colocam têm origem em duas causas hoje cada vez mais óbvias e relativamente simples de perceber.

Primeiro, porque temos responsáveis políticos com uma visão do trabalho completamente obsoleta e ultrapassada. Para estes, é justificação bastante para os valores risíveis e até insultuosos dos apoios sociais concedidos a estes trabalhadores, o facto destes não terem uma carreira contributiva regular. Tudo o que seja diferente de um contrato de trabalho com horários fixos (preferivelmente as 40 horas semanais), é menos válido, no fundo. As próprias regras do nosso sistema fiscal estão desenhadas para favorecer este modelo de trabalho e prejudicar o trabalho independente, com incidência particular naquele que se desenvolve de forma intermitente.

Criar, com todas as suas irregularidades e especificidades, não é para os nossos responsáveis políticos (e não só) um trabalho, ponto. Querem mais que 219€ de apoio? Vão trabalhar. É isto que se lê nas entrelinhas de tudo o que a Ministra aqui disse.

O segundo motivo é termos uma classe política incapaz de perceber a diferença entre apoio e investimento. Disse a Ministra que uma das grandes causas na origem dos problemas hoje vividos é o termos convivido durante décadas com a precariedade na Cultura. Disse bem, mas esqueceu-se de dizer porque é que isso acontece. Tal sucede porque tivemos sucessivos governos que, como ela, consideram por exemplo a compra de obras de arte nacionais no valor de 500.000€ um “apoio aos artistas”. Não é: chama-se a isso investimento. É impensável e indefensável termos um tecido cultural composto de estruturas a desenvolver trabalho digno, regular e constante, meritório e reconhecido, que todos os anos têm de concorrer para apoios! A Cultura não precisa de apoios, precisa de investimento: precisa de um orçamento que não seja uma anedota (em que um incremento de 70 milhões de euros é apresentado como algo histórico) para assim poder financiar em condições o tecido estrutural em que trabalham estas 130.000 pessoas, tantas delas precárias.

Os concursos para apoios são uma ferramenta válida para balizar o mérito e o valor artístico dos que se propõem a lançar-se na área. Ou seja, para os projectos (singulares e colectivos) que estão a iniciar um trabalho e que por isso, não reúnem ainda condições para aferir se o trabalho que desenvolvem colhe valor que justifique um investimento mais significativo. Estes apoios (à criação, à circulação e tantos outros) fazem sentido nestas circunstâncias, mas não podem substituir-se a um real investimento no sector: financiando sucessivamente estruturas que necessitam e valem muito mais que isso, estamos na verdade a fugir de garantir condições de funcionamento estáveis a dezenas de milhar de pessoas. Mais do que um Estatuto do Artista (iniciativa louvável e necessária, mas que em si só não resolve o problema pois apenas incide num dos vectores que o compõem, além de que pode facilmente transformar-se em mais uma forma perniciosa de deslocar responsabilidades que pertenceriam ao Estado), precisamos que o nosso tecido cultural deixe de existir em concorrência através de concursos pré-fabricados, e seja nutrido numa lógica de investimento com verdadeira estratégia artística e cultural.

À luz de tudo isto, importa dizer que o que sempre foi exigido desde o começo da pandemia continua sem resposta: reais apoios sociais para um sector que se viu proibido de trabalhar.

Pondo de parte as inverdades do discurso adoptado pela Srª Ministra (e que já muitos outros se têm dedicado a propalar), nesta semana em que são abertas linhas de um apoio “absolutamente extraordinário”, sobram 2 questões: por um lado, as regras deste apoio não mudaram e continuam a excluir uma larga fatia dos trabalhadores da Cultura; por outro, mesmo que queiram enganar a opinião pública com o apelativo número de 1.316,43€, convém realçar que a este terá sempre de ser deduzido o valor recebido durante os meses de Abril e Maio.

Para que toda a gente perceba: quem em Abril e Maio tenha conseguido o apoio máximo de 219€ (essa fortuna), pode concorrer a este apoio extraordinário (os restantes continuam sem poder aceder a qualquer apoio social), mas esses valores ser-lhe-ão descontados. Feitas as contas, sobram 878,43€. Em duas tranches, para um mês, já não falando do quão complexo é todo o subjacente processo burocrático.

É isto que a Srª Ministra considera histórico. Percebo que o seja, em termos estatísticos; mas todos sabemos que a estatística não traduz a vida real e perante tal quadro, pouco ou nada importa.

A última pergunta que lhe colocaram foi se considerava que tem condições políticas para continuar no cargo. Independentemente do que está na origem de decisões tão questionáveis, há uma componente que ninguém consegue ignorar: a formação de quem exerce cargos públicos não pode demonstrar tão graves lacunas ao nível da empatia e humildade. A Ministra passou uma entrevista inteira a tentar escudar-se às críticas que lhe são dirigidas com as desculpas que provavelmente lhe dão dentro dos gabinetes, mas o que subjaz nem é a dúvida legítima se ela própria acredita no que está a dizer: é a suprema falta de humildade de admitir que as decisões por ela tomadas não estão a ser eficazes e que lhe falta um conhecimento mais aprofundado da realidade.

Tornou-se crescentemente óbvio que aquela foi uma entrevista em que nunca foram feitas as perguntas que realmente importam, destinada por isso a outros fins. Importa saber se a Ministra é um ser humano sem compaixão pelos desgraçados ou se sabe quanto tempo demorou o decreto do lay-off a ser aprovado? Ou o que realmente importa é saber se alguém com esta tutela reconhece que os apoios ditos sociais se excluem uns aos outros (para além de continuarem desenhados para deixar muitas pessoas de fora) e que o problema de fundo não é a carreira contributiva destas pessoas, mas o preconceito que lhe está associado e a falta de uma estratégia de investimento que não assente na lógica de apoios?

Ficou cara ao PS esta tentativa de emendar a mão antes de uma semana tão “histórica”: perante uma Ministra com sérios problemas de comunicação, tiveram ainda o azar de lhes ter calhado um jornalista demasiado ávido de protagonismo, incapaz de a deixar responder a cada uma das inúteis perguntas que lhe colocou. A Cultura ganha agora mais 70 milhões, mas o barco continua a afundar e não é atirando mais dinheiro de forma avulsa que se vai conseguir tapar os buracos.

Artigo publicado em Marta Moreira - de cabeça cheia