Neste excerto de uma entrevista de Celia Hart ao jornal Morning Star, dada a 26 de Junho de 2006, a escritora e física cubana chama a atenção para o recentemente publicado livro de Che Guevara Apontamentos Críticos ao Manual de Economia Política da URSS, inédito até então, onde o Che "afirma de forma total e evidente que as sociedades socialistas dos anos 60 estavam a regressar inevitavelmente ao capitalismo."
Escreveu bastante sobre Che Guevara, não só pela sua importância nos anos 60, mas também nos dias de hoje. Qual é a importância de Che Guevara para a América Latina de hoje?
Bem, penso que a imagem de Che Guevara está actualmente mais presente que nunca. Ao mesmo tempo, as tentativas, digamos - não sei como chamá-las - de censurar ou de não publicar parte da sua obra indicam que o Che ainda não regressou plenamente. Porque a grande maioria das pessoas ainda não conhece a maioria dos apontamentos de Che, e sobretudo o livro que acaba de sair, publicado na Feira de Havana em Fevereiro deste ano, que se chama Apontamentos Críticos ao Manual de Economia Política da URSS.
[Neste livro], o Che Guevara faz uma crítica demolidora aos instrumentos que a União Soviética pós-Estaline usou para desenvolver o socialismo, chamando-lhe de neo-NEP [Nova Política Económica]. Diferente da NEP de Lenine, que a considerava um passo atrás, eles consideravam que essa NEP, esse novo projecto económico, era um passo adiante. Penso que este livro é uma continuação, ou um segundo capítulo da luta contra as forças anti-socialistas. Eu até lhe chamei, talvez exageradamente, o segundo volume da Revolução Traída. Neste livro, Che afirma de forma total e evidente que as sociedades socialistas dos anos 60 estavam a regressar inevitavelmente ao capitalismo.
Um brilhante economista cubano, Osvaldo Martínez, fez uma apresentação marcante deste livro, a segunda apresentação da obra em Havana. Chamou-lhe "Um Grito do Subdesenvolvimento". Esse grito era porque nesta região do mundo estavam os meios de compreender a situação revolucionária. O socialismo tinha mudado de sítio.
O "mundo desenvolvido" de hoje pouco teria a dizer se não compreendesse que [o papel do movimento socialista na] Europa do início do século XX tinha passado para o Terceiro Mundo.
Ernest Mandel entendeu isto. Por isso, os seus melhores esforços foram dirigidos para compreender esta realidade e converteu-se em companheiro de ideias do Che. Poucos revolucionários entenderam que a periferia passava a ser protagonista das lutas revolucionárias. Os anos 60 foram uma época de ebulição, e é uma pena que, nessa época, quase todos os partidos comunistas fossem ligados à URSS que, paradoxalmente, constituía um elemento reaccionário.
Este livro cheio de angústias, dúvidas e raciocínios é uma verdadeira bíblia no sentido da revolução. O Che afirma, contradiz-se, procura referências (as que encontra) e tenta pô-las ao serviço das causas do socialismo. Chamou-lhe "a minha intentona", o "grãozinho de areia". Mas esse grão de areia era na realidade um iceberg que destroçava o Titanic do imperialismo, do estalinismo e do reformismo.
Não conhecíamos estas ideias até agora. Por isso, é como se o Che voltasse a estar vivo, porque fomos impedidos de ouvir essa parte. Assim, bem vindo Che ao século XXI.
[O que ele previu] foi o que vimos depois, nos anos 90... O Che usou a sua perícia revolucionária para entender como é impossível usar o capitalismo para construir a sociedade socialista... Como diz um bom amigo meu: "A tese não pode ser resolvida com a antíteses". Devemos publicar depressa esses apontamentos e tomá-los como manual de análise. É muito importante, porque o Che foi não apenas um guerrilheiro heróico e um revolucionário excepcional, mas também um teórico marxista imprescindível, porque foi um construtor da revolução socialista em Cuba, foi ministro da Indústria, foi presidente do Banco Nacional, e tudo o que o Che nos tem a dizer vem de um revolucionário que escreve de dentro deste processo e não de alguém que olha de fora.
Por favor, convido todos a comprarem este livro. Escrevi um artigo sobre ele, intitulado "A 'intentona' do Che" . Penso que este novo Che Guevara liberta-se da camisa de forças reformista, estalinista e até mercantil que lhe puseram e vem em nosso auxílio.
Para voltar ao que estava a dizer... quando desapareça fisicamente o meu Comandante em Chefe a situação será semelhante... Com a sua maneira audaz e polémica, continuará a acompanhar-nos nos difíceis momentos da sua ausência.
Com dois revolucionários como esses envolvidos na revolução mundial, é quase como se a batalha pelo futuro do mundo estivesse ganha.
Este exemplo da presença do Che mostra-nos que essas ideias, esses impulsos, essa paixão são as únicas coisas que não teremos de herdar de Fidel - porque, tal como o Che, ele estará vivo na alma da revolução.
Leia também (em espanhol) de Celia Hart:
La intentona del Che
Un libro salvado del mar
Sobre os Apontamentos Críticos ao Manual de Economia Política da URSS:
Ernesto Guevara vaticinó el derrumbe del llamado "socialismo real"
Um inédito de Che Guevara
07 de outubro 2007 - 0:00
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