Montando a motocicleta do meu pai

03 de outubro 2007 - 0:00
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Quando li Diários de Motocicleta pela primeira vez, a obra consistia apenas num maço de folhas dactilografadas. Mesmo assim, identifiquei-me imediatamente com esse homem que narrava as suas aventuras de forma tão espontânea. À medida que fui lendo, comecei a perceber que o escritor era o meu pai.

Por Aleida Guevara, publicado originalmente no The New York Times em 9/10/2004

Houve momentos em que me sentei na garupa da sua motocicleta e me agarrei às suas costas, passeando com ele pelas montanhas e em torno de lagos. Admito que houve certos trechos que me fizeram interromper a leitura, especialmente quando ele descreve de forma tão crua coisas que eu nunca falaria sobre mim mesma. Porém, quando o faz, revela novamente como era capaz de ser honesto e não convencional. Para falar a verdade, quanto mais lia, mais amava o garoto que o meu pai foi.

Passei a conhecer melhor o jovem Ernesto Che Guevara: o rapaz de 23 anos que deixou a Argentina com sede de aventuras e com sonhos de realizar grandes feitos, e que, à medida que descobria a realidade do nosso continente, continuava a amadurecer como ser humano e a desenvolver-se como ser social. É possível enxergar vagarosamente como os seus sonhos e ambições mudaram.

O jovem que nos faz sorrir no início com os seus absurdos e loucuras torna-se cada vez mais sensível, à medida que fala sobre o complexo mundo nativo da América Latina, sobre a pobreza do seu povo e a exploração à qual este é submetido. Apesar de tudo, jamais perde o senso de humor, que se torna cada vez mais refinado e subtil.

O meu pai, «ése, el que fue», como se identificava, mostra-nos uma América Latina que poucos de nós conhecemos, descrevendo as suas paisagens com palavras que dão cor a cada imagem e atingem os nossos sentidos, de tal forma que podemos ver aquilo que os seus olhos vêem.

Ele fica cada vez mais consciente de que aquilo de que os pobres mais precisam não é do seu conhecimento científico como médico. O que é mais importante para eles é a sua força e a sua persistência na luta para promover mudanças sociais que lhes permitam recuperar uma dignidade que lhes foi tirada e espezinhada por séculos.

Com a sua sede de saber e a sua grande capacidade de amar, ele mostra-nos como a realidade, se interpretada apropriadamente, pode permear um ser humano a ponto de mudar a sua forma de pensar. Eu tinha apenas seis anos de idade quando o meu pai morreu, há exactos 37 anos, de forma que dele trago poucas memórias. Passei a conhecê-lo à medida que crescia. A minha mãe, Aleida March, amava-o profundamente, e compartilhava os seus ideais, que passou aos filhos. Aquilo de que mais me lembro é da grande capacidade que o meu pai tinha de amar.

Muitas vezes me descrevo como sendo um acidente genético; tive a honra e o privilégio de ser filha de um homem e de uma mulher que são pessoas muito especiais. E sou também um produto da revolução cubana.

Sou pediatra, especializada em alergias, em Havana. Quando era jovem, a imagem do meu pai influenciou-me, mas mais tarde escolhi a medicina como forma de estar mais próxima do meu povo. Também trabalhei como médica na Nicarágua, em Angola e no Equador.

Como família, ficamos felizes quando a imagem do meu pai inspira as pessoas a aprender mais sobre ele e o seu pensamento, mas muitas vezes a comercialização dessa imagem soa-nos como uma falta de respeito àquilo que ele foi e pelo que lutou.

Desde a década de 80, nós - a família de Che e outros - temos trabalhado nos seus manuscritos não publicados. Esses documentos foram mantidos como parte do seu arquivo pessoal, e em grande parte eram e continuam a ser guardados com ciúme pela minha mãe.

Para publicar qualquer coisa escrita pelo Che que ele próprio não pretendesse publicar - como foi o caso das notas que se transformaram em Diários de Motocicleta -, é necessário um sério trabalho de edição.

Não podemos omitir textos, mas ao mesmo tempo não se pode garantir completamente que ele teria dado a autorização para que o texto fosse publicado exactamente da forma como foi escrito. É por isso que nos comprometemos a editar aquilo que ele escreveu sem mudar o significado almejado - uma tarefa muito difícil.

Uma editora cubana publicou Diários de Motocicleta pela primeira vez em 1993. Entre os vários livros que o meu pai escreveu, esse é um dos meus favoritos, porque aproxima o jovem Ernesto de outros jovens do mundo actual - o que é a coisa mais importante -, revelando como as pessoas podem ser modificadas se forem sensíveis ao que está à sua volta.

Embora na ilha só exista uma cópia do filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, os cubanos que o viram falaram muito bem do trabalho. Ele é divertido, suave e profundo.

Embora não estejamos mais nos anos 50 ou 60, infelizmente as condições na América Latina que provocaram uma profunda mudança no jovem Che Guevara ainda estão presentes em muitas partes do nosso continente e do mundo, com um impacto cada vez mais brutal.

Será que o filme e o livro se tornaram tão populares porque a sua força e ternura são um modelo para as pessoas das quais precisamos nestes tempos? Acredito que seja isso, e sinto-me orgulhosa de viver entre pessoas que não só o amam, mas que põem em prática o seu desejo de criar um mundo que seja bem mais justo.

Tradução de Brasil de Fato, adaptada pelo Esquerda.net

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