Hoje, duas semanas depois do triunfo em Nápoles e Milão e dez anos depois do G8 em Génova, festejamos a vitória do referendo sobre a água e de um novo modo de fazer política. Nasceu um novo laboratório político e alcançou-se uma vitória que muito deve ao fórum dos movimentos pela água e a uma cidadania activa que progressivamente compreendeu a necessidade de se reconquistar e de ver afirmados os seus direitos. O movimento referendário teve a força e a coragem, desde o início do percurso, de aprender a soletrar um novo modo de fazer política e de exprimir novas subjectividades, fora do sistema dos partidos.
Consciente do saque que se estava a realizar sobre os bens comuns, o movimento soube ter a coerência, rigor e humildade para reconfigurar o “grito” de Génova 2001, declarando a exigência de sair das lógicas proprietárias e individualistas e afirmando espaços e bens comuns onde possam ser exercitados e satisfeitos direitos básicos. Hoje recolhe-se o fruto de uma semente não compreendida e odiada pelo establishment institucional, mas também uma semente que os mais atentos compreenderam que determinaria uma inversão de rota e uma recusa clara da ligação umbilical entre burguesia mafiosa, política, economia e sectores da administração pública.
A partir de 2001 abriu-se em Itália, por meio do papel determinante de muitas realidades locais e práticas sociais, a batalha pelos bens comuns contra a privatização selvagem dos direitos de cidadania e contra os abusos que um sector público cada vez mais corrompido e contaminado por interesses particulares. Conseguiu libertar-se o conceito de participação dos formalismos jurídico-institucionais e das manhas da democracia formal. Contrastaram-se com firmeza mecanismos hipócritas de cooptação e instrumentalização.
O embuste “normativo” da participação foi desmascarado e conseguiu desenvolver-se para além dos mecanismos legislativos que buscavam capturá-la. A partir da vitória de hoje pretendemos que as políticas públicas (nacionais e locais) deixem de ser silenciadas a partir de cima e que as instâncias participativas, elementos decisivos para a gestão dos bens comuns, se transformem em verdadeiros direitos – expressão de antagonismo, proposta, gestão e controlo. Todos os municípios devem adoptar deliberações que estimulem a afirmação da democracia participativa, experimentando mesmo ir além da legislação vigente.
A vitória de hoje é a prova de que participação e bens comuns são categorias que estão a contribuir para a emergência de novas subjectividades políticas fora do sistema dos partidos. Através da batalha da água – mas também através da batalha pela defesa do trabalho, do território, da universidade pública, dos direitos dos migrantes, contra o nuclear – os cidadãos reapropriam-se do direito de se exprimir sobre bens comuns, sobre bens que lhes pertencem, sobre bens que têm uma função incontornável no exercício dos direitos fundamentais. Estão a partir de agora avisados todos os municípios que preferem fazer negócios com os privados em lugar de zelar pelo bem da comunidade. Estes administradores terão a fazer-lhes frente cidadãos prontos a reagir aos planos de venda de serviços e património público. As comunidades locais já não estão dispostas a tolerar gestões municipais que, aliadas a sectores da burguesia mafiosa, perseguem interesses particulares, assumindo decisões não participadas e silenciadas a partir de cima. A partir de hoje, um objectivo político fundamental será a realização de um governo público e participado dos bens comuns, numa perspectiva de mudança efectiva.
Artigo publicado em “Il Manifesto”, traduzido por Miguel Cardina para esquerda.net