Primeiro.O sim da maioria dos eleitores tem que ver com os serviços públicos e a energia. O que quer dizer é que a água, como outros serviços públicos essenciais – o transporte público, o serviço de recolha de lixos - não podem ser, de maneira nenhuma, encomendados a empresas privadas. É uma autêntica revolução. Provavelmente o primeiro caso no mundo dum pronunciamento popular desta amplitude – e solenidade – sobre um tema tão comprometido. Um tema em torno do qual temos já pelo menos quinze anos de lutas, resistências e campanhas.
Na nossa opinião, não se trata só de estar orgulhosos do que aconteceu no nosso país e de o mostrar como um exemplo que todos deveriam seguir. O que se decidiu é avançar para uma democracia cidadã efectiva capaz de gerir estes serviços longe da voracidade das multinacionais ou das “multiserviços” – cujas cotações na bolsa já se estão a afundar – mas também para além da burocracia clientelar do público-partidário. Estes resultados também põem em questão a ideologia de “privado é eficiente” e do “liberalismo light” que animou até o centro-esquerda. É sintomático que Eugenio Scalfari, em La Reppublicade domingo, apelasse a votar “sim” mas sem reconhecer mérito algum à iniciativa das consultas, já que as suas posições e as do Partido Democrático (PD) em temas como a água, os serviços públicos ou as nucleares eram muito diferentes das dos promotores dos referendos.
O voto sobre o não retorno das nucleares, não menos importante que o voto sobre a água, vem confirmar este processo de necessária regeneração democrática. Face à urgência do abandono ou da limitação ao extremo do consumo de energias fósseis, ao proibir as centrais nucleares os cidadãos assinalam a alemã como a via correcta: colocar todo o empenho, no futuro imediato, em energias renováveis. A produção de energia difusa é – ou poderia ser - outro bloco na construção de uma democracia à medida da cidadania, do território e das comunidades.
O voto sobre o chamado “legítimo impedimento” é o corolário desta nova guia de remessa. A lei é igual para todos, sem privilégios. Trata-se do primeiro passo, o mais elementar, de toda democracia.
Segundo.O voto dos referendos confirma e reforça os “novos ventos” que começaram a soprar com as eleições locais. Como em Milão ou em Nápoles, os verdadeiros artífices da vitória dos candidatos que o próprio PD não queria – e cujo reforço contradiz o politicismo de quem (como d’Alema) insistia que a esquerda devia aliar-se com o “terceiro pólo”- foram as associações, redes e grupos de uma vasta sociedade civil que se dirigiu a todos os cidadãos sem distinção para lhes propor outro modelo civilizacional. O mesmo aconteceu com os referendos. O protagonismo tocou à cidadania mobilizada – mais que tudo – com o objectivo de recolher assinaturas para a convocação dum referendo sobre a água. Esta campanha foi um feito sem precedentes em Itália. Milhares de comités, em apenas três meses, conseguiram recolher um milhão e trezentas mil assinaturas. Esta é a contundente resposta a quem falava dum desaparecimento dos movimentos sociais. Faz já tempo que,com o turbilhão do deflagrar da crise, estáem marcha uma “revolução silenciosa” que está a modificar modelos culturais e estilos de vida. Por exemplo, segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2010 entre 8 e 10 milhões de pessoas utilizaram serviços derivados da pequena produção agrícola local.
Ainda mais, a quem sustenta, como o Corriere della Sera, que os referendos estão “viciados” pela “emotividade”, pode-se replicar que a campanha em defesa da água tem mais de uma década e que se tantos cidadãos assinaram, e logo votaram, é porque estão convencidos de que a privatização era um grave erro. É pelo contrário o Corriere della Sera, que anda há anos junto dos grandes meios a martelar de maneira cansativa a favor das privatizações e da energia nuclear, que deveria reflectir sobre o facto de que a maioria da cidadania lhes virou as costas.
O passo seguinte, em nossa opinião, deveria ser que a infinidade de movimentos, comités e associações locais ou temáticas – os principais vencedores destes comícios - tomem consciência de que a água, a energia e os serviços públicos em geral, deveriam ser o fundamento de um modo de viver alternativo, de uma economia baseada nos bens comuns ao invés do lucro privado.
A proposta que temos para fazer não carece de fundamentos. E agora, temos a força e a autoridade para a levar em frente. Do que se trata é de não desperdiçar este tesouro, de fazer convergir as imensas energias que tornaram possível a vitória nos referendos noutro modo de fazer política.
Os partidos guerrearam entre si para determinar quem é o verdadeiro vencedor dos referendos e tenderão a deixar de lado o seu conteúdo. Haverá que batalhar, portanto, para que a ampla variedade de cidadãos que acorreram a votar tenham claro que a grande derrotada de hoje foi a ideologia do Produto Interno Bruto, do “mercado” como regulador da sociedade, do consumo sem limite da natureza. Uma ideologia que todos os partidos –salvo excepções muito minoritárias- partilham.
Terceiro. Livrámo-nos de Berlusconi. Quer dizer, continuaremos a vê-lo a exibir-se em todas as televisões e o governo continuará em funções apesar da crescente fractura da actual maioria. O que importa, contudo, é que nos libertámos da sensação de imbatibilidade do relato berlusconiano de uma sociedade individualista e consumista, do enriquecimento por qualquer meio e das soluções virtuais para problemas reais. Na realidade, o aparelho berlusconiano foi derrotado tanto em Milão como na questão das nucleares, em Nápoles como no debate sobre a água. E naturalmente, foi derrotado com a recusa duma das suas mais descaradas leis ad pessoam, a do impedimento legítimo.
Depois de mais de quinze anos de omnipresença de Berlusconi, da sua vulgaridade e da sua capacidade para dizer uma coisa e o seu contrário, de mentir sem pudor e de interpretar as piores pulsões sociais, estamos a tirar um grande peso de cima das costas. Todavia não sabemos quanto aguentará a ficção do “governo” e da “confiança” (comprada). Mas o certo é que estamos a chegar ao fim duma época que humilhou o nosso país.
Pierluigi Sulloé director da Revista Carta Semanal e membro da rede de pessoas, asociações e comités cidadãos reunidos sob o lema “Democracia quilómetro zero” (www.democraziakmzero.org)
Artigo traduzido para espanhol por Gerardo Pisarellopara Sin Permisoe para português por Paula Sequeiros para esquerda.net