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RD Congo: Não há fim à vista para a guerra contra as mulheres e crianças
Os observadores internacionais dizem que “não há lugar pior para uma mulher ou criança” do que a província do Kivu Norte, na República Democrática do Congo. O país está a ser palco de conflitos armados que trazem à memória a guerra civil no Ruanda e as atrocidades contra civis sucedem-se por parte de rebeldes e tropas governamentais. O esquerda.net reproduz um excerto do recente relatório da Amnistia Internacional baseado em testemunhos de quem continua a sofrer com a guerra.
(Excertos do Relatório da Amnistia Internacional)
O contínuo horror da violação e outras formas de violência sexual
No Norte do Kivu, membros de grupos armados e outras forças de segurança governamentais continuam a violar e abusar sexualmente mulheres e meninas, e em menor número, homens e rapazes.
Crianças muito novas e mulheres idosas encontram-se entre as vítimas, muitas das quais sofreram violações em grupo ou foram violadas mais do que uma vez. Violações são praticadas em público e em frente de membros da família, incluindo crianças. Algumas mulheres foram sequestradas e mantidas como escravas sexuais. Em muitos casos, o abuso sexual e a violação parecem ser motivados por questões étnicas e/ou com o objectivo de aterrorizar e desmoralizar comunidades suspeitas de apoiar grupos inimigos.
Os grupos armados signatários do Acto de compromisso de 23 de Janeiro de 2008 comprometeram-se a um “estrito respeito pelas leis internacionais humanitárias e dos direitos humanos”, incluindo a imediata “cessação dos actos de violência, extorsão, discriminação e exclusão, de todas as formas, contra populações civis, em particular mulheres e crianças, idosos e incapacitados”.
Como documentado em muitos testemunhos abaixo transcritos, no entanto, o alastramento da violação e outras formas de violência sexual continuam, apesar da assinatura daquele acordo. Nenhuma das raparigas ou mulheres entrevistadas para este relatório exprimiram fé no processo de paz de Kivu enquanto os grupos armados e soldados continuarem a cometer sistematicamente actos de violência contra civis. Segundo enunciado da Declaração de Mulheres para a Conferência de Paz de Goma, “as vozes das mulheres ainda não foram ouvidas nem se lhes atribuiu o seu lugar por direito (na busca da paz). Mulheres e crianças continuam a ser as principais vítimas de diversas formas de violência.
Não existem estatísticas completas sobre a escala de violações no Norte de Kivu. De acordo com os números de Dezembro de 2007 da ONU, cerca de 350 casos de violação são relatados todos os meses no Norte de Kivu, sendo que cerca de um terço são cometidos contra crianças de idade inferior a 18 anos.
A Comissão Provincial do Norte do Kivu para a Luta contra a Violência Sexual, contudo, relata 800 novos casos apenas em Abril de 2008, 670 dos quais em território Rutshuru. Uma ONG que trabalha com sobreviventes de violações em partes do território Lubero registou 410 violações que requereram tratamentos médicos em 2007, dos quais cerca de 40% eram praticados contra raparigas com menos de 18 anos. Um quinto (20%) destas violações foram atribuidas a soldados FARDC, 16% a guerrilheiros mayi-mayi e 11% a guerrilheiros FDLR (os CNDP não estão presentes no território Lubero).
Os restantes ataques terão sido cometidos por civis. O Hospital Kayna em território Lubero recebeu 93 casos de violação entre Outubro de 2007 e Fevereiro de 2008 mas, segundo informação do pessoal médico à Amnistia Internacional, estes eram casos de mulheres ou raparigas com sérias complicações de saúde, necessitando de intervenção hospital, que conseguiam viajar para receber o tratamento. Estes números devem ser assumidos como representantes de apenas uma fracção de indivíduos que foram sujeitos a violação na região. Outra rede de ONG, activa sobretudo nas áreas Masisi e Goma, registaram 224 novos casos nos três primeiros meses de 2008, dos quais 30% são atribuídos a guerrilheiros de grupos armados, 8% aos soldados FARDC e os restantes a civis.
Dada a relutância ou impossibilidade de muitas mulheres e raparigas avançarem com queixas de violações ou procurar cuidados médicos, podemos assumir que o actual número real de vítimas é muito mais elevado. Muitas mulheres e raparigas vivendo em áreas que ainda estão sob influência de grupos armados receiam represálias na eventualidade de terem fazer queixa ou procurar cuidados médicos por violações.
Além do trauma da violação, os direitos dos sobreviventes são também violados no seguimento da violação, aumentando consideravelmente o seu sofrimento. Devido ao estado delapidado e sem recursos do sistema de saúde, a maior parte das mulheres que sofrem lesões ou doenças causadas pela violação não recebem o adequado cuidado médico e psicosocial. Muitas vítimas femininas de abuso sexual e violação são subsequentemente abandonadas pelos seus maridos e excluídas das suas comunidades, condenando-as a si e às suas crianças à extrema pobreza.
Por causa da intrincada impunidade e um sistema judicial incapacitado, há poucas perspectivas das vítimas obterem justiça ou serem compensadas pelos crimes de que foram alvo.
Uma lei nacional de 2006 sobre violência sexual, que define claramente a violação e procura acelerar os processos judiciais e maior protecção para as vítimas, apesar de ser bem vinda tem vindo a ser pouco implementada. Oficiais de justiça têm, em muitos casos, recursos limitados para conduzir investigações e perseguições, e são muitas vezes pouco treinados. Por exemplo, há apenas quatro oficiais da polícia servindo na cidade de Kirumba e seus arredores, em território Lubero, com uma população que ronda os 55 mil habitantes, de acordo com os agentes de segurança locais. Em alguns casos, são levadas a cabo medidas informais para castigar alegados agressores, incluindo açoites infligidos por comandantes e habituais “arrangements à l’aimiable”, nos quais os agressores oferecem uma forma de compensação, em dinheiro ou géneros, à vítima ou à sua família, mas muito poucos são conduzidos perante a justiça. Esta impunidade, combinada com a contínua insegurança, leva a que mulheres e raparigas vivam com medo de ataques ou represálias.
Siglas:
CNDP (Congrès National pour la Défense du Peuple)
FARDC (Forces Armées de la République Démocratique du Congo)
FDLR (Forces Démocratiques de Libération du Rwanda)
Texto completo aqui. Tradução de Joana Valdez
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