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Paulo Freire no Occupy

Como o pensamento do educador, que completou 100 anos, pode ajudar-nos a pensar os limites do Occupy e outros “movimento das praças” da década passada? Por Rodrigo Nunes.
Foto de Michael Fleshman, Flickr.

A coincidência histórica que pôs a data de início do Occupy Wall Street apenas três dias antes do aniversário de Paulo Freire tornou-se bem mais visível este ano, quando se celebrou o décimo aniversário do primeiro e o centenário em rápida sucessão. Como relacionar as duas datas? A proximidade fortuita entre elas convida-nos a pensá-las em conjunto, procurando no educador brasileiro elementos que nos ajudem a pensar alguns dos impasses do Occupy e outros movimentos antissistémicos surgidos desde então.

Uma lição pedagógica sobre a política

A maioria das pessoas lembra-se de Freire hoje como alguém que tinha uma lição política a respeito da pedagogia. Se a educação é tratada como mera transmissão de um conjunto de conteúdos, alertava Freire, ela não emancipa, apenas reproduz a divisão entre os que sabem e os que não sabem. A libertação supõe a capacidade de pensar o mundo de maneira independente, e uma educação que não desperte essa capacidade não tem como ser chamada de libertadora. Emancipar é despertar a capacidade de pensar por si mesmo.

Parar por aí, no entanto, é ignorar outro aspecto do pensamento de Freire: ele também tinha uma lição pedagógica sobre a política. A segunda lição, derivada diretamente da primeira, é que o método dialógico é o único adequado para uma “liderança revolucionária”. Esta expressão, que se repete um total de 31 vezes no livro mais célebre de Freire, Pedagogia do Oprimido, provavelmente soa chocante para quem tem uma imagem de Freire como feroz inimigo do vanguardismo, crítico da própria ideia de “liderança”. Afinal, qual poderia ser o lugar dos líderes num método que supõe a igualdade de todos? Para entender isso, é necessário entender tanto o que é a igualdade em Freire quanto o que ele entende por liderança.

A igualdade é, antes de tudo, a igualdade de uma potência: todos são capazes de aprender e pensar criticamente, todos são dotados da capacidade de se tornarem participantes conscientes da construção do mundo. Mas essa igualdade não exclui diferenças reais. Pelo contrário: é precisamente porque todas as pessoas são capazes de aprender e se encontram sempre em situações distintas umas das outras que existem diferentes saberes existem. No entanto, isso também significa que algumas habilidades e conhecimentos essenciais sobre a forma como o mundo está estruturado estão desigualmente distribuídos. Para que a igualdade não permaneça apenas um potencial, as condições que criam essa distribuição desigual de oportunidades de aprendizado devem ser transformadas. A meta de realizar a primeira igualdade supõe, portanto, a meta de realizar uma outra: a igualdade material entre os seres humanos. 

Acontece que a consciência dessa necessidade está também mal distribuída. Se aqueles que a possuem desejam compartilhá-la com os demais, quais são as diferentes alternativas teóricas através das quais eles podem compreender a sua posição em relação aos outros?

A alternativa freiriana

A primeira é concluir que quem tem mais deve ensinar quem tem menos, e ponto final. Freire a rejeita porque, mesmo quando bem intencionada, resvala na divisão paternalista entre quem sabe e quem não sabe, e trata a libertação como uma transferência de saber de um grupo para outro. Pretender libertar os outros “sem a sua reflexão no ato desta libertação”, escreve Freire, “é transformá-los em objeto” e em “massa de manobra”. 

A segunda alternativa é negar que existam diferenciais de conhecimento: todos os saberes sobre todas as coisas são igualmente válidos. Trata-se de uma saída tentadora, pois cria à partida, num único gesto, aquela igualdade que se tinha como objetivo de longo prazo. Mas tem um problema: ela limita a nossa capacidade de fazer referência a um mundo compartilhado, o que é indispensável à própria possibilidade de uma prática política. Por exemplo: se você pensa que eu sou explorado e eu não, você não pode apelar para os meus interesses objetivos em oposição à minha percepção subjetiva para convencer da exploração a que sou sujeito, porque nem você nem eu temos um acesso privilegiado à objetividade. O meu interesse é aquilo que eu identifico como tal e nada mais. Qualquer tentativa de persuasão seria, assim, arrogante, desrespeitosa com a diferença e, no limite, uma forma de violência.

A terceira alternativa é inverter o jogo: sim, existem diferenciais de conhecimento, mas eles vão na direção oposta; são os oprimidos que sabem tudo e os opressores, inclusive aqueles que se dizem revolucionários, que não sabem de nada. Mais uma vez, o apelo desse gesto é óbvio. Num só golpe, os humilhados são exaltados e, pelo menos no discurso – ainda que não nas relações materiais – os pretensos líderes são postos nos seus devidos lugares. O custo de segui-lo, entretanto, é essencializar os oprimidos: todos pensam a mesma coisa (pelo menos tendencialmente), e aquilo que os oprimidos realmente pensam permanece a mesma coisa independentemente das suas relações com o mundo. Ao fazê-lo, além disso, estamos implicitamente a afirmar ter exatamente o tipo de conhecimento que criticamos nos pretensos líderes: somos nós que realmente sabemos o que pensam os oprimidos e que sabemos que essa é realmente a verdade. Por fim, não fica claro que tipo de intervenção política decorre desta ideia fora aquela que consiste em amplificar as vozes daquelas pessoas que correspondem à nossa ideia do que “as pessoas” pensam.

O Occupy e todo o ciclo de lutas que se iniciou em 2011 foram assombrados pelo fantasma de um duplo défice democrático. Por um lado, aquele da pós-política neoliberal, que transformou partidos de esquerda e direita, dos vários países, em meros veículos dos interesses do mercado financeiro e de corporações. Por outro, aquele que marcou as traumátcas experiências autoritárias da esquerda no século XX.  

Nas grandes assembleias gerais que começaram a brotar em praças por todo o mundo, esses movimentos acreditaram encontrar um contraponto, talvez até um antídoto, para esse estado de coisas. No entanto, embora essas assembleias tenham cumprido um papel importante de dar voz a quem acreditava não tê-la e tornar audíveis realidades que haviam sido silenciadas, elas estiveram longe de ser tão bem-sucedidas quando se tratava de construir novos consensos, constituir identidades políticas ou forjar direções compartilhadas. Em parte, isso aconteceu porque muita gente acreditava que a única maneira de evitar os erros associados à primeira das três alternativas acima era optar por uma combinação das outras duas, e consideravam qualquer desvio disso como intrinsecamente suspeito. Sem dúvida houve até quem invocasse Paulo Freire para justificar essa escolha.

A alternativa de Freire, contudo, é na verdade uma quarta. Ela consiste em dizer que diferenciais de conhecimento existem de facto, mas estão distribuídos de tal modo que não há uma grande bipartição entre quem sabe, de um lado, e quem não sabe, de outro. Da mesma forma, a reflexão crítica não está homogeneamente espalhada, mas tampouco é monopólio de uns poucos. Não é que todos os saberes sejam iguais, mas sim que diferentes grupos e indivíduos têm mais ou menos, melhor ou pior conhecimento sobre coisas diferentes, e assim todos têm algo a aprender com todos, e todo mundo têm algo a ensinar. Uma vez que os processos políticos exigem conhecimentos de diferentes tipos, e nem mesmo a liderança mais bem-intencionada pode conceder a independência como uma “doação”, estes processos não podem ser concebidos como uma simples transferência de conhecimento de um grupo para outro; eles requerem autonomia e diálogo. Mas isso é bem diferente de dizer que “o povo já sabe” ou “cada um tem a sua verdade”. Como Freire resume, a questão é antes que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.

Daí decorre que “liderança” não é uma posição pertencente a um grupo fixo (a vanguarda que sempre sabe mais que os outros, em todas as situações e departamentos), mas uma função a ser exercida por quem quer que, num contexto determinado, possua um diferencial de saber que o torne capaz de disparar um processo de aprendizado coletivo. Esta liderança pode vir de dentro ou de fora de um grupo social, pode ser individual ou coletiva, de curta ou longa duração; como ninguém ensina a si mesmo, sem essa diferença inicial nada aconteceria.

Saber ouvir: uma outra liderança é possível

Ao celebrar as conquistas e avaliar os limites do Occupy e do “movimento das praças”, é importante lembrar esta lição freireana: o potencial para a igualdade entre as pessoas não pode ser atualizado fazendo de conta que as diferenças não existem, ou absolutizando-as a ponto de tornar o questionamento e a persuasão atos intrinsecamente suspeitos, supostamente carregados de intenções autoritárias ou violentas. Pelo contrário, é partindo das diferenças existentes, mas sem abrir mão do diálogo nem recorrer à manipulação e à imposição, que um processo emancipatório pode realizar-se.

Mas isto não implica fazer de Freire um inesperado companheiro de viagem daqueles que lamentaram na época que o que faltava ao Occupy era uma liderança revolucionária? Novamente, tudo depende de como se entende essas palavras. Sempre há quem queira e se ache qualificado para liderar, e certamente havia pessoas assim em torno do “movimento das praças”. A questão, claro, é que não é isso que constitui uma liderança revolucionária para Freire. O que é, então? Fundamentalmente, a capacidade de se fazer seguir, ou seja, de apontar uma direção que os outros considerem válida, útil e importante. E fazê-lo sem impor ou manipular, por meio do diálogo aberto, da reciprocidade e da persuasão.

Se esse é o caso, a primeira qualidade que um líder precisa ter é saber ouvir. Não para repetir o que já está a ser dito, mas para saber onde introduzir uma nota diferente, onde colocar a tensão que pode desencadear um processo de aprendizagem coletivo – e também, claro, para saber quando ficar quieto. Se os movimentos da década passada eram tão alérgicos à ideia de “liderança”, é em parte porque não lhes ocorria que a palavra também pudesse significar isso. Como consequência, eles frequentemente acabavam presos a uma noção bastante empobrecida de democracia; uma noção que a transforma numa arena para a expressão de diferenças individuais tratadas como absolutos em vez de um espaço para a influência e troca mútua – na qual as pessoas entram para mudar as outras e serem, em troca, mudadas por elas.

Artigo publicado na Jacobin Brasil.

Rodrigo Nunes é professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil. Seu livro, Neither Vertical Nor Horizontal: A Theory of Political Organization, publicado pela Verso, sairá em português no ano que vem pela editora Ubu.

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