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Augusto Boal: “Para que eu exista é preciso que Paulo Freire exista”
Na Babilónia, muitos séculos antes de Jesus Cristo, um homem observou uma maçã caída de uma macieira que rolava num declive por uma ribanceira e viu o que todos apenas olhavam: a maçã rodava tocando o solo pela circunferência. O homem deu conta daquilo que ninguém antes percebera: para rodar, a maçã não necessitava de ser esférica – bastaria ser circular. E inventou a roda.
As rodas que vemos rodando pelo mundo, pelos trilhos, pelas velozes pistas, pelos mercados, em casa, na rua, foram inventadas por um génio: um homem que viu o que todos apenas olhavam.
Uma outra maçã, séculos mais tarde, caiu na cabeça de Newton. Qualquer um de nós teria dado um grito, feito uma imprecação, dito um impropério, amaldiçoando o reino vegetal. Newton, ao contrário, viu o óbvio: “a matéria atrai a matéria na relação direta das massas e inversa do quadrado das distâncias”. É lógico, límpido e cristalino. Porque, se assim não fosse, a maçã não teria jamais caído na cabeça de Newton: seriam a terra e Newton que teriam caído na maçã. Isso, hoje, é fácil de entender. Mas foi preciso um génio para ver o que todos apenas olhavam.
Arquimedes, tomando banho de banheira, percebeu que sua perna tendia a flutuar. Coisa estranha! E, num lampejo, - “Eureka!” - descobriu o óbvio: “Um corpo sólido mergulhado num líquido recebe um empuxo de baixo para cima igual ao peso de volume de líquido deslocado”. Nada mais elementar. Só que, antes, ninguém tinha traduzido, em teoria, a prática das pernas flutuantes. Todos os utilizadores de todas as banheiras, piscinas, lagoas, viam pernas a flutuar, achavam muito normal, mas só Arquimedes deduziu a lei que regia tais fenómenos.
Assim são os génios: descobrem ou inventam o óbvio que ninguém vê. Assim aconteceu com Paulo Freire: descobriu que “o vovô absolutamente não viu o ovo”, nem a “vovó viu a ave”, mas ao contrário – com certeza certa! - o pedreiro viu a pedra, a cozinheira o feijão, o lavrador a enxada, a soja e o trigo. E o operário e o camponês não viam o salário, as férias, o direito à escolaridade dos filhos, à saúde. O trabalhador não via a hora de descansar. O faminto, a hora de comer. O povo, a hora da redenção.
E, assim, desenhando em letras e palavras a dor que o pobre sentia na carne, - mas sem esquecer os desenhos do sonho e da esperança! - Paulo Freire inventou um Método, o seu, o nosso, o Método que ensina ao analfabeto que ele é perfeitamente alfebatizado nas linguagens da vida, do trabalho, do sofrimento, da luta, e só lhe falta aprender traduzir em traços, no papel, aquilo que já sabe, no seu quotidiano. Maiêutico, socrático, Paulo Freire ajuda o cidadão a descobrir, por si, o que traz dentro de si.
E, neste processo, aprendem o professor e o aluno: “A um camponês ensinei como se escreve a palavra arado; e ele ensinou-me a usá-lo!”, disse um professor rural. Só é possível ensinar uma coisa a alguém que, a nós, uma coisa ensina. O ensino é um processo transitivo – diz o nosso Mestre – um diálogo, como deviam ser diálogos todas as relações humanas: homens e mulheres, negros e brancos, classes e classes, países e países. Mas sabemos que esses diálogos – se não forem carinhosamente cuidados ou energicamente exigidos – bem cedo se transformam em monólogos, onde apenas um dos “interlocutores” tem direito a palavra: um sexo, uma classe, uma raça, um conjunto de países. E os outros são reduzidos ao silêncio, à obediência: são os oprimidos. E esse é o conceito Paulo-Freiriano de opressão: o diálogo que se transforma em monólogo.
O rei Afonso VI da Espanha teria dito certa vez: “Se Deus tivesse pedido a minha opinião, antes de criar o mundo, eu teria aconselhado alguma coisa bem mais simples”. Paulo Freire, de certa forma, descomplicou o ensino. Embora Deus nada lhe tenha perguntado – isto, ao que consta oficialmente, mas no intimo estou convencido que perguntou sim! - ele criou alguma coisa mais simples, mais humana do que as complicadas formas de ensino que obstaculizavam o aprendizado.
Com Paulo Freire aprendemos a aprender.
No seu Método, além de se aprender a ler e a escrever, aprende-se mais: aprende-se a conhecer e respeitar a alteridade, o outro, o diferente. O meu semelhante a mim se assemelha, mas não sou eu; a mim se assemelha: com ele me pareço. Dialogando aprendemos, ganhamos os dois, o professor e o aluno, pois que alunos somos todos, e professores. Existo porque existem. Para que se escreva numa página branca é necessário um lápis negro; para que se escreva num quadro negro é necessário que o giz tenha outra cor. Para que eu seja, é preciso que sejam.
Para que eu exista é preciso que Paulo Freire exista.
O ato de aprender a ler é aprender a pensar, e pensar é uma forma de ação. Assim, apesar de vovôs e vovós das antigas cartilhas serem dignos de todo o respeito, apesar de aves e ovos serem dignos de todo o cuidado, o camponês precisa de saber como se escreve o nome do instrumento com que lavra a terra, o pedreiro com que se constrói a casa, a cozinheira com que nomes condimenta a feijoada e quais desejaria.
Artigo publicado em http://augustoboal.com.br/2018/05/10/augusto-boal-sobre-paulo-freire/
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