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O problema de “Lincoln”, de Steven Spielberg

Daniel Day Lewis merece o óscar de melhor ator pela sua interpretação maravilhosa de Lincoln no filme de Steven Spielberg. Mas enquanto a ação é excelente, há um problema com o filme: baseia-se na premissa de que Lincoln libertou os escravos. Os historiadores afirmam que não é bem assim. O fim da escravatura não se deu porque Lincoln e a Câmara dos Representantes votaram a favor da Décima Terceira Emenda.
O melhor trabalho que eu conheço sobre o fim da escravatura é o livro inesquecível de Eric Foner “The Fiery Trial: Lincoln and American Slavery”, publicado em 2010, que ganhou o Prémio Pulitzer, o Prémio Bancroft e o Prémio Lincoln. Foner e muitos outros historiadores enfatizaram, nos últimos pares de décadas, o papel central desempenhado pelos próprios escravos, que são virtualmente invisíveis neste filme. Durante as três semanas que o filme aborda, o exército de Sherman marchava pela Carolina do Sul, onde os escravos estavam a confiscar plantações. Eles estavam a dividir a terra entre si. Estavam a apossar-se da sua liberdade. A escravatura estava a extinguir-se no terreno, não apenas na Câmara dos Representantes. O filme não aborda essa perspetiva.
No filme, Lincoln dedica-se à grande tarefa de conseguir que a Câmara ratifique a Décima Terceira Emenda. Mas o filme não menciona que Lincoln não apoiou a Décima Terceira Emenda quando esta foi proposta em 1864 – pela Women’s National Loyal League, dirigida por Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton. O ponto de vista de Lincoln nessa altura, como mostra Foner, era que a escravatura deveria ser abolida numa base Estado a Estado, já que a escravatura foi criada por lei estadual. Ele mudou de opinião perante a pressão política dos Republicanos Radicais.
De acordo com o filme, em 1865 Lincoln estava numa “corrida contra o tempo” (esta sinopse foi retirada da semi-oficial Internet Movie Data Base), porque “a paz pode surgir a qualquer momento, e se surgir antes de a emenda ter passado, os regressados países do Sul travarão a emenda que abole a escravidão antes desta se tornar lei”. Isto simplesmente não é verdade. O filme focou-se na última sessão ordinária do Congresso de janeiro de 1865. Se o Congresso não tivesse ratificado a emenda, Lincoln teria anunciado que iria convocar uma sessão especial do novo Congresso em março, na qual os Republicanos teriam uma maioria de dois terços. Aí a emenda teria passado facilmente – pouco mais de um mês depois do último Congresso ordinário retratado no filme.
O filme produz outro falso argumento, que, assim que os Estados do Sul voltassem a integrar a União, teriam poder para bloquear a ratificação da emenda, que requeria os votos de três quartos dos Estados. Lincoln e os restantes Republicanos não iriam permitir que os governos de Estados Confederados se mantivessem no poder após a rendição – isso era o que “Reconstrução” significava. Louisiana, Tennessee e Virgínia já tinham formado novos governos que aboliram a escravatura. Não existia nenhuma “corrida contra o tempo” – e, portanto, o drama central do filme é falso.
Outra questão levantada pelo filme mas que não é verdadeiramente respondida é por que razão a Proclamação de Emancipação, que Lincoln emitiu a 1 de janeiro de 1863, não libertou todos os escravos. Lincoln sabia que, segundo a Constituição, o presidente não tinha poder para revogar leis aprovadas pelos Estados – incluindo as leis que legalizavam a escravatura no Sul. Mas ele tinha poder como comandante supremo para tomar medidas em tempo de guerra que considerasse “necessidades militares” para salvar o governo – neste caso, minando a Confederação ao declarar os seus escravos livres e ao recrutá-los como soldados da União. Assim, a Proclamação de Emancipação era uma medida militar que se aplicava apenas aos escravos em áreas sob o controlo da Confederação. Meio milhão de escravos nos quatro Estados fronteiriços e em West Virginia mantiveram-se escravizados. Lincoln acreditava que, uma vez ultrapassada a “necessidade militar”, seria necessária legislação para acabar definitivamente com a escravatura.
Críticos abolicionistas argumentam que a Proclamação de Emancipação não libertou, de facto, nenhum escravo. Mas, tal como explica Foner no “The Fiery Trial”, a proclamação “foi tanto um documento político como militar”. Antes da guerra, Lincoln e muitos outros argumentaram que a escravatura deveria ser abolida pelos Estados, gradualmente, e compensando os proprietários dos escravos. Agora a sua proclamação “dirigia-se diretamente aos escravos, não como propriedade dos inimigos do país mas como pessoas com vontade própria e cujas ações poderiam ajudar a ganhar a Guerra Civil”. Foner enfatiza o ponto de vista do abolicionista Wendell Phillips, no sentido de que a proclamação “não fez da emancipação uma punição para rebeldes individuais, tratou a escravidão como ‘um sistema’ que deve ser abolido”.
“Nunca antes um número tão grande de escravos foi declarado livre”, conclui Foner. “Ao fazer do exército um agente de emancipação e conjugando os objetivos da União e a abolição, garantiu que a vitória do Norte produzisse uma transformação social no Sul e uma redefinição do lugar dos negros na vida americana”. Tudo isso está ausente no filme de Spielberg.
É perfeitamente apropriado e justo que este filme homenageie Lincoln. Mas os historiadores têm mostrado como a escravidão se extinguiu como resultado das ações dos ex-escravos. Como Eric Foner conclui: "Isso seria uma história dramática para Hollywood."
Publicado pela The Nation
Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net
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