O mau serviço de “Lincoln”

A crítica de Alan Maass ao filme de Spielberg (“O grande intransigente”) acrescentou alguma complexidade à discussão deste filme excelente – mas com falhas profundas como relato histórico. Por Charlie Post

24 de fevereiro 2013 - 8:09
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Maass está absolutamente certo ao afirmar que Lincoln, nem no filme nem na história, foi “um grande conciliador”. Os paralelos estabelecidos com Obama não são precisos, apesar de o guionista Tony Kushner assim o desejar (veja-se a sua reveladora entrevista a Bill Moyers). Conforme o demonstram biografias recentes, em particular a de James McPherson “Abraham Lincoln e a Segunda Revolução Americana” e a de Eric Foner “A prova de Fogo: Abraham Lincoln e a Escravatura Americana”, quando Lincoln assumia uma posição política, nunca vacilava.

No entanto, devemos ter bem claro que, conforme as palavras de McPherson, Lincoln era “um revolucionário relutante”. Lincoln era um pragmático. Reagia a “factos no terreno” – em especial, a fuga em massa de escravos durante a guerra (aquilo que W.E.B. DuBois chamou de “greve geral”) e o resultante colapso da escravatura.

E é precisamente a “relutância” de Lincoln para liderar uma revolução profunda no Sul durante a Guerra Civil – e o papel decisivo da fuga em massa de escravos das plantações – que falta ao retrato hagiográfico de Spielberg e Kushner.

Não basta apenas argumentar que “Lincoln não é sobre tudo o que aconteceu durante a Guerra Civil”. A decisão de Spielberg e Kushner de focar apenas as maquinações parlamentares que envolveram a Décima-Terceira Emenda, fez um magnífico filme, mas criou uma visão de emancipação que tem profundas falhas.

Em primeiro lugar, Lincoln é apresentado como um defensor consistente da abolição descompensada, imediata e permanente da escravatura – uma posição que ele só viria a abraçar em meados de 1862. Antes da sua decisão de emitir a Proclamação da Emancipação, Lincoln promoveu, sem sucesso, vários esquemas para a emancipação gradual, com a compensação dos proprietários dos escravos (em particular daqueles nos estados “fronteiriços”) e o envio de colonização de afro-americanos à América Central, às Caraíbas ou a África.

Em segundo lugar, o filme exagera muito quanto ao impacto da Décima Terceira Emenda. Muita da pesquisa histórica dos últimos 20 anos tem revelado que nos finais de 1864, a escravatura como base de produção no Sul estava morta.

Embora alguns dirigentes políticos Confederados possam ter acreditado que a “instituição singular” podia ser restabelecida, os próprios antigos escravos – através da sua ligação ao exército da União como espiões, trabalhadores e soldados e a auto-organização de sindicatos, apreensão de plantações abandonadas e outros – tinham destruído a escravatura. (De acordo com Kevin Anderson, o autor de Marx nas Margens, Marx adota a noção de “auto-emancipação” devido às lutas dos escravos durante a Guerra Civil Americana.) Simplificando, a Décima Terceira Emenda reconheceu legalmente a realidade da luta de classes no Sul.

Imagine-se como nós à esquerda, em particular os que estávamos na tradição do “socialismo a partir de baixo”, teríamos reagido a um filme sobre a organização dos sindicatos industriais da década de 1930 que apenas olhasse para as deliberações do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no Conselho Nacional da Relações de Trabalho contra Jones & Laughlin Steel Corporation, o caso de 1937 que sustentou a constitucionalidade da Lei Nacional de Relações de Trabalho de 1935?

Em vez de retratarem a auto-actividade e auto-organização dos trabalhadores industriais que lançaram as greves gerais por toda a cidade de Mineapolis, Toledo e São Francisco em 1934, as ondas de greves na indústria básica em 1935 e 1936, e as greves sit-down de 1936-37, deveríamos ter longas discussões entre os juízes do Supremo Tribunal para debater se a cláusula do comércio interestadual da Constituição dos Estados Unidos deve ou não ser aplicada aos sindicatos.

Ficaria surpreendido se alguém na nossa tradição política argumentasse que um filme como este “não era sobre tudo o que aconteceu na década de 1930” em vez de condenar a sua fetichização à custa das lutas das massas da classe trabalhadora.

Charlie Post, New York City

8 de Janeiro de 2013

Tradução de Noémia Oliveira para o Esquerda.net

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