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Fronteiras, direitos políticos e direitos humanos
Se teoricamente, quase todas as grandes revoluções, desde da americana, passando pela francesa até a russa, tentaram superar a ideia de fronteira e, se até a República também adotou a cidadania que delas resultou como condição de pertença à comunidade politica, o certo é que a “tensão entre raça, cultura e nação nunca foi inteiramente ultrapassada”, nem pelas revoluções em si, nem pelo advento da República. As Revoluções afirmaram o primado da igualdade assente na condição humana e na universalidade da mesma, mas a República pese embora tivesse incorporado a cidadania como instrumento desta igualdade, manteve-se presa ao Estado-Nação que contraria a ideia de uma pertença comum à comunidade humana em igualdade de circunstância no âmbito das suas relações de poder. Apesar das revoluções, nomeadamente a revolução francesa, terem constituído uma rutura ideológica substancial na afirmação dos direitos humanos contra os privilégios de origem e de pertença cultural e/ou geográfica, o facto é que a República ao albergar o Estado-nação que circunscreve a titularidade e o exercício destes direitos não apenas a um âmbito geográfico mas também simbólico, tornou-se uma fonte de desigualdade, amputando do exercício da cidadania parte importante das pessoas, consoante a sua pertença a determinados espaços geográficos e sócio-políticos.
Portanto, o Estado-Nação, espaço onde tradicionalmente se arreiga e se conforta a ideia de pertença - uma espécie de bitola identitária homogénea e onde a categoria política “cidadão nacional” é essencial na legitimação da exclusão do “outro” - ainda aparece como horizonte quase intemporal e a-histórico, como se de uma emanação natural se tratasse e não fruto de uma construção social e histórica da qual resultaram uma série de categorizações e classificações que excluem. Tornou-se o espaço por excelência da construção do “outro” para justificar a sua exclusão do tal universo “nacional”. Ora, o regime político vigente, assente no Estado-Nação, teima pois em transportar inabaláveis perceções racistas que consolidam as narrativas coletivas sobre “nós” e os “outros”, confortando as discriminações institucionais e afastando a/os cidadãos imigrantes da participação política. De facto, na Europa em geral e em Portugal em particular, a porosidade política entre racismo, colonialismo, imigração está na base da negação às/aos imigrantes da condição de sujeito político.
A nacionalidade e a cidadania são duas dimensões políticas distintas que constituem instrumentos soco-políticos diferentes consoante as circunstâncias, desempenhando obviamente funções políticas também diversas. A nacionalidade é um espaço jurídico e institucional, com pouca presença na nossa vida quotidiana, enquanto a cidadania é um instrumento político e uma ferramenta social que nos liga, através de múltiplos laços, com concidadãos do mesmo espaço geográfico e político - seja este espaço a região, o concelho ou o país. A cidadania está presente em cada um dos nossos atos e dos atos da sociedade para connosco, sejam eles administrativo, político, económico, cultural e social. A exclusão da participação política – o direito de eleger e ser eleito - de uma parte dos cidadãos que convivem connosco é a tradução de que a diferença real ou presumida é em si mesma uma fronteira de uma democracia por construir.
O debate sobre sobre fronteiras, direitos humanos e direitos políticos é um debate sobre as próprias fronteiras da universalidade dos direitos políticos. É um debate sobre a necessidade de “uma outra dialéctica do universal e do singular”.
Esta dialéctica convoca-nos para a necessidade de desconstruir o mito fundacional da pertença nacional como único garante da possibilidade cidadã e a urgência de construir as possibilidades de convivência entre o singular e o universal, ancorados na igualdade política efectiva entre cidadãos, independentemente das suas diferenças de origem e de pertença.
Texto de Mamadou Ba e Sofia Roque, que participam no painel “Fronteiras, direitos políticos e direitos humanos” no Fórum Socialismo 2017. O painel será sábado 26 de agosto, às 18.15h na Sala 4.
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