Europa: pagar pela privatização

28 de março 2010 - 0:00
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Estamos em 1989, os Correios PPT, a empresa pública holandesa de correspondência, é privatizada. Nos anos seguintes, a empresa é dividida em diferentes partes responsáveis pelas entregas, pelo telégrafo e pelos telefones. As várias partes tornam-se independentes umas das outras e as suas acções são vendidas em bolsa. Os Correios não são a única empresa pública a ser privatizada e vendida. Seguiram-se os Caminhos de Ferros holandeses, as antigas minas detidas pelos Estado - agora uma empresa de produtos químicos - e outros serviços públicos. O neoliberalismo e tudo o que ele acarreta tornaram-se um forma de pensamento dominante.



Vinte anos depois da privatização dos PTT, agora designados por Correios TNT, os patrões estão em rota de colisão com os trabalhadores e os sindicatos. Ou estes aceitam um corte de 17,5% nos salários ou 11 mil pessoas serão despedidas. Os trabalhadores recusam-se a aceitar isto e exigem um aumento de 1,5%.



A Holanda lidera no que respeita a privatizações. Dennis de Jong, membro do Parlamento Europeu pelo Partido Socialista, não esconde a sua irritação: "A União Europeia (UE) decidiu que os correios devem ser privatizados até ao dia 1 de Janeiro de 2011. A Holanda está a apressar a política europeia, é parte da vanguarda na privatização."



Na Bélgica o passo é mais lento, "a indústria da correspondência ainda não foi privatizada, o Estado detém 51% das acções e um banco de seguros inglês detém o resto. Mas a perspectiva da chegada de empresas privadas novas em 2011 levou a mudanças significativas nos últimos anos", diz Serge Alvarez-Fernandez de Bruxelas. Ele trabalha para os correios desde há mais de vinte anos. Na Bélgica, o mercado dos correios não é completamente aberto mas as companhias privadas estão autorizadas a entregar correio expresso e encomendas. Os maiores concorrentes neste novo mercado são a DHL, a FedEX e a TNT holandesa.



A situação na Grã-Bretanha é comparável à da Bélgica. Peter vive em Londres e trabalhou durante vinte ano para a British Royal Mail; "A Royal Mail ainda é pública mas nos últimos anos a liberalização tem sido implementada aos poucos." Parte das entregas postais são feitas pela TNT e pela Deutsche Post alemã. Peter: "Nenhuma destas empresas tem a infra-estrutura necessária para fazer as entregas porta a porta. Eles distribuem o correio de grandes empresas - a verdadeira entrega é feita pela Royal Mail."



A empresa postal francesa também é pública. Christophe, de Paris, trabalha há dezasseis anos nessa empresa. "Se os julgarmos pelo que dizem, todos os partidos políticos, incluindo os de direita, opõem-se à privatização. Mas estes partidos e o social democrata Parti Socialiste concordaram que era necessário 'modernizar' os correios."



A privatização dos correios na Holanda teve repercussões importantes nos salários e nas condições de trabalho. Rob van der Post tem 54 anos e trabalha para a TNT desde que tinha 17 anos. "A liberalização do mercado postal abriu as portas a empresas como a Sandd e a Selekt Mail. Ao permitir isto, os salários e as condições de trabalho dos trabalhadores dos correios estão em perigo. O governo não pode forçar empresas como estas, chamamos-lhes 'os cowboys do mercado postal', a pagar salários decentes. Para competir com eles, a TNT constituiu a sua segunda plataforma de distribuição, Netwerk VSP. É inteiramente uma subsidiária da TNT. O resultado é que a TNT está a destruir a velha empresa. É ela própria responsável por um negócio estragado e pelo decréscimo de correio distribuído pela TNT."



Pouco tempo antes do Natal, as empresas Sandd e Selekt Mais foram bem sucedidas em levar o Estado a tribunal. Estas duas concorrentes da TNT pagaram aos seus trabalhadores, não à hora, mas à peça. Frank van Heemskerk, ministro do Comércio Externo, tentou modificar esta situação porque na actual situação os trabalhadores dos correios têm muito poucos direitos. Por isso é que van Heemskerk obrigou as empresas a dar a 10% dos trabalhadores um contrato fixo até a 1 de Abril de 2010. No fim de 2012, esta percentagem deverá subir até aos 18%. Contudo, por causa da decisão do juiz, os 'cowboys' podem continuar a pagar à peça aos seus trabalhadores despedindo aqueles que trabalham a tempo inteiro.



Despedindo trabalhadores com contrato



Podemos ver a tendência da TNT em livrar-se dos trabalhadores a tempo inteiro substituindo-os lentamente por trabalhadores precários, por exemplo, em part-time ou temporários. Muitas vezes estes são jovens e mulheres ou pensionistas à procura de uma forma de aumentar os seus rendimentos. E porque estes trabalhadores não dependem primordialmente deste trabalho, não têm tanta inclinação a organizar-se ou a fazer exigências. Ao dividir o trabalho e as responsabilidades, a TNT consegue pagar menos aos trabalhadores a tempo parcial.



Rob van der Post: "os Correios TNT declararam aos media que num período de seis anos, não haverá nenhum trabalhador a tempo inteiro. O membros do Parlamento dizem agora que o mercado postal está danificado pela chamada 'corrida ao fundo'. Mas não era este o objectivo da globalização desde o início? Para os trabalhadores tanto da TNT como das novas empresas, as coisas não melhoraram. E o público holandês nota uma diminuição na qualidade do serviço postal, enviar uma carta não ficou mais rápido nem mais barato."



Não é apenas a composição dos trabalhadores que está a mudar, estes são cada vez mais pressionados e intimidados pelos seus patrões. "A administração é muito rápida a usar medidas disciplinares contra os trabalhadores. Pelo mais pequeno descuido, eles retêm o rendimento equivalente a uma hora de trabalho. Só podes usar a casa-de-banho se o líder da equipa autorizar, não é permitido falar e também não podes comer durante as horas de trabalho. Os administradores, não o médico, decidem quando alguém está ou não doente."



Actualmente, 60% dos trabalhadores postais na Bélgica são empregados do Estado. Desde há alguns anos, os contratos temporários deixaram de ser substituídos por contratos fixos e os empregados que saem da empresa são substituídos por precários.



Em França, 60% dos empregados têm um contrato fixo, mas La Poste não contrata novos funcionários desde 2002. Christophe: "Todos os anos desaparecem empregos. A subsidiária Mediapost apenas recruta pessoas em part-time. Em certas subsidiárias, os trabalhadores são pagos à peça. Na Colipost, os trabalhadores têm de usar os seus próprios carros para entregar o correio.



Papel dos sindicatos



Desde há uns meses, os trabalhadores postais da Holanda têm vindo a pressionar crescentemente para entrarem em acção, e há insatisfação também entre os trabalhadores postais de outros países. Pete: "A Royal Mail está a tentar cada vez miais trabalhar com precários. Conseguem parcialmente, mas os sindicatos opõem-se e a maioria dos trabalhadores postais ainda têm contrato. O Sindicato dos Trabalhadores das Comunicações (CWU) esteve em luta contra a ameaça de perda de empregos. A administração não quis negociar e houve greves. Começaram como greves locais e lentamente ganharam dimensão nacional. Muitos temem que o Royal Mail consiga empregar cada vez mais trabalhadores postais em part-time e que isso abra o caminho para a privatização completa."



Também houve greves na Bélgica. "Os Correios querem substituir os actuais trabalhadores por precários que trabalhem três horas ao dia e por um salário menor, diz Serge Alvarez-Fernandez. "Tanto o sindicato cristão CSC/ACV quanto o social-democrata PMB/ACOD apoiam as acções dos trabalhadores postais mas não as coordenam. As secções flamengas de ambos os sindicatos aceitaram um novo acordo colectivo sobre condições de trabalho e salários e isto reduziu as possibilidades de acção na Flandres."



Na aparência, tudo está calmo na TNT da Holanda, mas há muita insatisfação na empresa. Os empregados pedem cada vez mais que haja acção sindical. Van der Post: "Os sindicatos querem preservar os empregos e ganhar novos associados nas novas companhias postais. Enquanto os sindicatos não tomarem a iniciativa, não haverá greves." As perspectivas de acção ficam mais complicadas pelo facto de haver duas organizações sindicais nos trabalhadores postais. O ABVAKABO FNV, o sindicato dos trabalhadores do Estado, organiza os trabalhadores do TNT desde que esta empresa era estatal. O FNV Bondgenoten organiza os empregados das novas empresas. Nenhum dos sindicatos organiza apoio para o outro. Dennis de Jong afirma as perspectivas sombrias para os trabalhadores postais: "Na TNT vemos o que acontece quando algo é feito num mercado que deveria ter permanecido serviço público. Depois da privatização, a TNT está em risco de ser desmembrada em pequenas parcelas de capital de risco."



Perspectivas



O futuro dos correios belgas é incerto. O De Post tem de entregar correio diariamente em todo o país, enquanto sob a nova legislação as novas empresas postais podem entregar correio apenas duas vezes por semana e apenas em partes da Bélgica. Alvarez-Fernandez: "Isto põe o De Post numa situação económica difícil. Sob estas condições, vai ser difícil competir com as novas empresas."



O único sindicato britânico com apoio significativo dos trabalhadores postais é o CWU. O sindicato sempre combateu as tentativas dos Tories e do New Labour de privatizar a empresa postal. Oficialmente, o Labour opõe-se à privatização mas a sua política oferece uma perspectiva diferente. "No início deste ano, o Labour tentou privatizar uma parte do Royal Mail mas teve de adiar. Os Tories e os Lib-dems são a favor da privatização completa."



As perspectivas em França são igualmente pouco claras. Christophe: "Os partidos de esquerda, como o PCF e o NPA, e os sindicatos defendem a ideia de que os correios devem ser um serviço público e opõem-se à privatização." Dennis de Jong: "É possível que o governo francês privatize os correios mas mantenha a maioria accionista. Mas a União Europeia ainda vai exigir que outras empresas possam competir nesse mercado."



No final do ano passado, houve quem dissesse que, com a crise, o neoliberalismo tinha acabado. O oposto parece ser verdadeiro - uma nova onda de privatizações mais flexibilização e ataques à segurança social preparam-se em toda a Europa. Sabendo-se isto, é urgente que os sindicatos comecem a pôr em contacto os seus activistas. Qualquer movimento começa com pessoas informadas e com intercâmbio de informações. Que dificuldade tem o movimento sindical europeu de facilitar a criação de uma rede internacional, nesta era digital? Uma rede não apenas de organizações, mas de membros e de activistas. O conhecimento das semelhanças em toda a Europa e os contactos internacionais ajudarão os trabalhadores a trocar experiências de luta e saberem que não estão sós. Qualquer movimento tem a sua própria dinâmica, e isto pode ter efeito através das fronteiras.



Lot van Baaren é militante do SAP, secção holandesa da Quarta Internacional, e activista sindical.



Tradução de Sofia Gomes e Luis Leiria

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