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Estudantes procuram acabar com a herança de Pinochet

Em três meses de mobilizações massivas, os estudantes chilenos mudaram a face do país. Nunca nos últimos vinte anos os protestos foram tão importantes como estes. Renascem os sonhos de Allende. Por Víctor de la Fuente
Manifestação de 30 de Junho de 2011 – Foto de Depreda_grafica/Flickr

Centenas de milhares de jovens manifestam-se nas ruas, algo que não se via desde os anos finais da ditadura 1. Em três meses de mobilizações massivas, os estudantes chilenos mudaram a face do país e puseram em posição incómoda o governo de direita de Sebastián Piñera.

Depois de duas décadas em que permaneceu semi-adormecida, a sociedade chilena despertou quando de algum modo já se tinha formado a ideia de que não havia outra alternativa senão o neoliberalismo.

"Está a chegar ao fim uma etapa da história do país. Começou há mais de vinte anos e envolveu cinco governos. Começou cheia de esperanças quando os chilenos puseram fim em 1988 a uma ditadura. Para além dos seus êxitos, a etapa pós-ditatorial acumulou desesperança e frustração. As promessas não realizadas consolidaram uma sociedade profundamente injusta", sintetiza um texto escrito por três dirigentes de uma nova força de esquerda2.

Onde pára o exemplar "modelo chileno", o "jaguar da América Latina"? Se há quarenta anos, quando o país era mais pobre, a educação era gratuita, que se passou com o desenvolvimento e os altos índices de crescimento? Onde está o dinheiro do progresso, perguntam-se os estudantes.

A 28 de Abril, pressagiando o grande movimento que se desencadearia em Junho, realizou-se a primeira mobilização nacional de universitários, de instituições públicas e privadas, contra o elevado nível de endividamento que têm de assumir para acederem ao ensino superior3.

Em Maio, começaram a sentir-se ventos de mudança quando trinta mil pessoas se manifestaram em Santiago e vários milhares em diversas cidades contra o projecto HidroAysén que tenta instalar cinco mega-empresas na Patagónia. Os opositores reagiram com rapidez em defesa do meio ambiente e na recusa do gigantesco negócio da multinacional Endesa-Enel associada ao grupo chileno Colbún. Esse projecto, apoiado pelo governo e por dirigentes dos partidos da direita e da Concertación4, foi aprovado à margem da opinião dos cidadãos, gerando ampla rejeição em todo o país.

Pouco antes, tinham-se dado importantes movimentos regionais, como em Magallanes, contra a subida do gás e em Calama para conseguir benefícios da produção de cobre na zona, assim como recuperação de terras e greves de fome dos mapuches. A seguir, juntaram-se outras reivindicações, as vítimas do terramoto de Fevereiro de 2010 que passam o segundo Inverno em habitações de emergência, os sindicatos do cobre que paralisaram as minas, as marchas pelo direito à diversidade sexual, mas sem dúvida foram os estudantes secundários e universitários, com greves massivas, manifestações e ocupações de escolas, exigindo ensino gratuito e de qualidade, os que transformaram a situação dando outra dimensão às mobilizações e encurralando o governo de direita.

Questionar o sistema

O movimento estudantil lançou-se contra as próprias bases do sistema neoliberal, reivindicando o papel do Estado e pedindo que a educação não seja considerada uma mercadoria. Exigem acabar com o sistema de ensino que a ditadura militar deixou, baseado no lucro. A palavra de ordem mais cantada foi: "Vai cair, vai cair a educação de Pinochet!"

Para conseguir a mudança de fundo consideraram a realização de uma Assembleia Constituinte que elabore uma nova constituição. Propõem também que o financiamento do ensino gratuito seja feito através da renacionalização do cobre e de uma reforma tributária5. Procuram a solução do conflito exigindo mais democracia, com a realização de um plebiscito para que os cidadãos decidam que tipo de ensino quer o país.

Os estudantes denunciaram a imprensa oficial, que criminaliza as manifestações, e fizeram duras críticas tanto ao governo de Piñera como à Concertación. Tomaram o canal de TV Chilevisión e ocuparam também as sedes da ultra-direitista UDI e do Partido Socialista.

Paralelamente, renasce com força a figura de Salvador Allende, jovens vestidos como o presidente socialista eram aplaudidos com entusiasmo nas manifestações, onde apareciam letreiros como "Os sonhos de Allende são possíveis". Os discursos do presidente mártir, pronunciados há 40 anos, sobre a educação e a nacionalização do cobre, bateram recordes de visitas na internet6.

O movimento estudantil caracterizou-se pela sua clareza política e também pela sua dimensão e persistência. Foi unitário, com a participação de secundários e universitários, além de professores, associações de pais, ONG's e sindicatos.7

Do mesmo modo que noutras rebeliões no mundo, foram utilizadas a fundo as novas tecnologias, mas talvez o mais importante é ter sido um movimento democrático e participativo. Os estudantes procuraram manter uma boa relação entre o protagonismo dos dirigentes e a participação das bases, realizando assembleias onde todos dão opinião e decidem.

Mostraram grande criatividade na forma dos protestos, aparecendo cada dia nas ruas com uma novidade: disfarces, bailes, imitações de suicídios colectivos, beijos em massa, corpos nus pintados, corridas de dias à volta de La Moneda, imitação de pregadores, imobilizações nas ruas, lenços engenhosos... Procuram assim, não só chamar a atenção, mas também integrar outros sectores e demarcar-se dos actos de violência de rua. Repararam inclusivamente os danos causados à margem dos protestos, pintando fachadas de casas ou juntando dinheiro para o proprietário de um automóvel que ficou queimado.

A educação chilena

Se as mobilizações foram tão fortes, isso deve-se também ao injusto que é o modelo educacional chileno, implantado pela ditadura e desenvolvido pelos governos civis que lhe sucederam.

No ensino primário e secundário das últimas três décadas, houve um surto de escolas privadas ou subvencionadas que hoje em dia acolhem 60% dos alunos. Não existe uma única universidade pública gratuita, uma vez que todas, tanto as públicas como as privadas, cobram elevadas propinas, caso único na América Latina.

Menos de 25% do sistema educativo é financiado pelo Estado e mais dos 75% restantes dependem dos pagamentos dos estudantes. O Estado apenas consagra 4,4% do PIB para a educação, bastante menos que os 7% recomendados pela UNESCO. Existem hoje 60 universidades no Chile, a maioria privadas. Os estudantes têm que pagar mensalmente entre 170.000 e 400.000 pesos chilenos (250 e 600 euros), num país em que o salário mínimo é de 182.000 pesos (menos de 300 euros) e o salário médio 512.000 pesos (menos de 800 euros).

Esta situação faz que 70% dos estudantes chilenos utilizem o crédito universitário. 65% da quinta parte mais pobre da população não termina o curso universitário devido a problemas económicos8.

Segundo o sociólogo Mario Garcés, trata-se de um sistema perverso, que deixa milhares de jovens chilenos das classes média e baixa endividados logo que acabam de estudar, já que os empréstimos universitários começam a ser pagos a partir do primeiro emprego. Junta-se a isso o ensino ter deixado de ser um mecanismo de mobilidade social no Chile, para passar a ser o oposto: um sistema de reprodução da desigualdade9.

Porquê agora?

É certo que houve mobilizações estudantis durante os diferentes governos da Concertación, incluindo a de 2006, na presidência de Michelle Bachelet, conhecida como "A revolução dos pinguins" (devido à cor escura do uniforme e ao branco da camisa dos secundários das escolas públicas).

No entanto, nunca nos últimos vinte anos os protestos foram tão importantes como estes. Durante duas décadas, a Concertación administrou o sistema, tentando manter o complexo equilíbrio entre políticas de mercado e regulação estatal. Realizou algumas reformas, conseguindo diminuir os índices de pobreza e extrema pobreza, mas aumentando as desigualdades e deixando o Chile como um dos 15 países mais desiguais do planeta10. Inicialmente, a Concertación contava com a imagem positiva de ter contribuído para o fim de uma ditadura, mas o mal-estar e as críticas da população foram-se acumulando e o endividamento dos estudantes também. A injustiça do sistema tornou-se flagrante com a chegada de um governo abertamente de direita, que dirige o país como uma empresa.

Sebastián Piñera e os novos dirigentes chegaram com uma ideia ainda mais clara de deixar a educação nas mãos do mercado, o que atingiu o cúmulo, além de que os jovens (que não viveram a ditadura) estão menos influenciados pelo anti-estatismo.

Os conflitos de interesses também contribuíram para a rebelião estudantil, já que o próprio ministro da Educação, Joaquín Lavín, era fundador e accionista da Universidade do Desenvolvimento11.

O descrédito da classe política atinge um nível elevado. Todos os inquéritos de opinião mostram uma quebra persistente no apoio aos partidos de direita no governo, baixando também o apoio à Concertación, hoje na oposição.

Os jovens apenas confiam nas sua próprias forças e na dos movimentos sociais, mas não nos partidos, nem nas instituições, recusando a mediação de políticos e inclusivamente da Igreja.

Para enfrentar as mobilizações, o governo usou o diálogo e a repressão, encaminhando-se cada vez mais para a criminalização do movimento. A imprensa oficial, quer dizer, quase toda a imprensa, sobrevalorizou as acções violentas que se deram no final de muitas manifestações, provocadas por grupos marginais, alguns delinquentes e infiltrados, incluindo polícias, que foram denunciados com vídeos e fotografias12.

O passado dia 4 de Agosto ficou a ser a "quinta-feira negra" para o governo. O presidente Sebastián Piñera disse que "tudo tem um limite" e o ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, negou o direito dos estudantes se manifestarem na Alameda, como era habitual. A repressão foi sistemática durante todo o dia, tendo sido detidos segundo os próprios números oficiais 874 estudantes. A resposta dos cidadãos não se fez esperar e nessa mesma noite renasceram as manifestações de rua e as "caçaroladas" em todos os bairros e cidades do Chile. O governo, com a sua intransigência, transformou a marcha num Protesto Nacional, como nos tempos da ditadura. Nesse mesmo 4 de Agosto, a influente sondagem CEP concedeu a Sebastián Piñera apenas 26% de apoio, o resultado mais baixo para um presidente desde o regresso da democracia13.

Os estudantes persistem nas suas mobilizações, recusam as propostas do governo para baixar a taxa de juro do crédito e exigem uma mudança radical do sistema. Unem-se aos outros movimentos sociais, participam na Greve Nacional de 24 e 25 de Agosto e continuam a pedir um plebiscito para que sejam os chilenos a decidir democraticamente. Seja qual for a continuidade das mobilizações, nasceu já uma nova forma de fazer política, a partir dos movimentos sociais. Os jovens chilenos estão a abrir as grandes avenidas de que falou Allende14.

Artigo de Víctor de la Fuente15,publicado em lemondediplomatique.cl, traduzido por Jorge Vasconcelos para odiario.info


1 A maior manifestação desde 1990 foi a do Primeiro Fórum Social chileno em 2004, contra a visita de George W. Bush, que reuniu 70.000 pessoas. O actual movimento realizou desde Junho cinco marchas com mais de duzentas mil pessoas.

2 "O povo contra as duas direitas" de Jorge Arrate, Sergio Aguiló e Pedro Felipe Ramírez, membros do Movimento Amplo de Esquerda (MAÍZ). Publicado na edição chilena de Le Monde Diplomatique, Agosto 2011 e em movimientoampliodeizquierda.cl

3 Camila Vallejo, presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECH) e dirigente da Confederação de Estudantes (CONFECH) camilapresidenta.blogspot.com

4 A Concertación por la Democracia é uma aliança de centro-esquerda, hoje composta por quatro partidos (PS, PPD, PDC y PRSD), que governou nos últimos vinte anos.

5 A empresa estatal CODELCO nunca foi privatizada, mas a ditadura abriu novas concessões mineiras às empresas multinacionais e a Concertación seguiu o mesmo caminho. Hoje, 70% do cobre chileno é explorado por empresas estrangeiras. defensadelcobre.cl

6 Allende e a educação lemondediplomatique.cl - Allende e a nacionalização do cobre: lemondediplomatique.cl

7 Em cada bairro, os vizinhos recolhem ajuda para os liceus ocupados. De acordo com as sondagens, o apoio dos cidadãos às mobilizações estudantis situa-se entre 75 e 80%. accionag.cl

8 "Estudo sobre as causas do abandono universitário". Centro de Microdatos, Departamento de Economia, Universidad de Chile. microdatos.cl

9 Mario Garcés Durán, director da Organização Não Governamental chilena ECO Educación y Comunicaciones, em declarações à BBC Mundo.

10 "PNUD: Informe Regional sobre Desarrollo Humano para América Latina y el Caribe", 2010. hdr.undp.org/

11 O ministro Joaquín Lavín teve de ser retirado do Ministério da Educação em pleno conflito a 18 de Julho, embora Piñera o tenha mantido no governo como ministro do Planeamento. Ver também Franck Gaudichaud, "Botellas nuevas, vino viejo" ("Vinho velho em casco novo" – N.T.), edição chilena Le Monde diplomatique, Maio 2011

14 No seu último discurso em 11 de Setembro de 1973, a partir de La Moneda, Salvador Allende salientou "mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor".

15 Director da edição chilena do Le Monde Diplomatique

(...)

Neste dossier:

Revolta estudantil no Chile

Três meses de intensa mobilização estudantil em luta pela Educação Pública estão a transformar o Chile. No final de Agosto, dois dias de greve geral convocados pela central sindical ampliaram a luta contra o governo conservador de Sebastian Piñera e pelo fim da “herança de Pinochet”. Dossier organizado por Carlos Santos

O outro 11 de setembro: a tragédia chilena

O militante brasileiro Waldo Mermelstein vivia no Chile e foi testemunha do processo revolucionário e do golpe que vitimou milhares de pessoas e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Quarenta e um anos depois republicamos este artigo de 2011.

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Apesar de corresponder a um momento novo da política e da história social pós-ditadura, a revolta estudantil este só pode compreender-se a partir da perspectiva mais ampla da historicidade do século XX no Chile.

Carta da Confederação de Estudantes do Chile ao Presidente Piñera

Através do presente documento queremos intimar o Governo do Presidente Sebastián Piñera a manifestar de forma clara a sua posição relativamente às exigências seguintes, que representam temas fundamentais, omitidos ou abordados com ambiguidade e ineficácia.

Carta Aberta para que alguém a leia à cidadã Ena von Baer, por Luis Sepúlveda

Cidadã porta-voz do governo, se os estudantes vão mais além das suas justas reivindicações puramente académicas, é porque decidiram tomar em suas mãos a correcção de algo anómalo, como a aberração de o Chile ser um país democrático que se rege por uma Magna Carta escrita à imagem e semelhança do ditador que a impôs. Por Luis Sepúlveda, escritor.

Breve história do movimento estudantil

Não é errado afirmar-se que o movimento estudantil chileno tem sido o mais importante da América Latina nos últimos cinquenta anos. Por Álvaro Ramis

As lições do movimento estudantil chileno

Através de uma série de massivas manifestações pacíficas o movimento estudantil, liderado pela Confederação de Estudantes do Chile (CONFECH), expressou a sua insatisfação com o projecto de reforma educacional proposto pelo actual governo, mostrando à sociedade chilena que este não satisfaz as necessidades da educação científica, tecnológica, artística e humanista de seus habitantes. Por Jaime Massardo

Paralisação estudantil contra uma educação em crise em um país do "primeiro mundo"

Em Santiago do Chile, há muitas universidades, 80% delas privadas. Até aí nenhuma grande diferença da realidade brasileira em que 75% das vagas do ensino superior são oferecidas na rede privada. Mas no Chile, mesmo as universidades públicas são pagas. Essa realidade faz parte da política do governo Piñera para a educação. Por Mateus Fiorentini

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Muitos vídeos e diversos canais no youtube ajudaram a divulgar e dão a conhecer as acções e mobilizações dos estudantes chilenos. Um primeiro vídeo, sobre a manifestação realizada a 16 de Junho, a violenta repressão policial de que foi alvo e a resistência dos jovens.