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“É a pobreza, pá!” por Luís Fazenda
2007 parecia entrar bem com a despenalização do aborto, símbolo humanista e de género, arrancado em referendo, apesar do governo ter periclitado e do recém-eleito Cavaco ter ficado do lado da reacção, aonde pois?
Logo veio o cortejo de medidas do executivo, "reformas" para a ideologia dominante, perda de direitos sociais para a maioria dos cidadãos.
Artigo de Luís Fazenda
A OCDE espantou-se com o corte do valor das pensões futuras em cerca de 30%. Já é tido por natural que as pensões actuais sofram perda de poder de compra em 2007 e 2008. Com as novas regras para o subsídio de desemprego aumentam os desempregados sem apoio. A defesa do "estado social" para Sócrates traduz-se na desvalorização consecutiva das suas prestações. Não confundamos estado social com estado sucata.
Continua a turbulência de um Serviço Nacional de Saúde mal gerido, mas cheio de oportunidades para o sector privado. A população paga mais em saúde, mostram aliás todos os indicadores. Contudo, fecham-se serviços sem critério deixando pessoas a dezenas de quilómetros de qualquer atendimento. O encerramento de SAPs levou milhares de consultas para hospitais entupidos. Tudo para salvar o SNS, afirma Sócrates, ora aí está uma retórica que os vândalos achariam agressiva...
O ano que finda não foi apenas o "ano horrível" do SNS. A dita modernização da administração pública tem como emblema a lei da mobilidade que, no caso, significa despedimentos encapotados, a par da liberalização de contratos de trabalho por forma a alargar a rede clientelar.
O governo converteu os trabalhadores da função pública em bodes expiatórios do ataque geral aos direitos dos trabalhadores, assim o disse a CGTP que organizou as maiores manifestações de protesto dos últimos vinte anos. Aí é que foi, pá!
O confronto com os professores teve foros de um ajuste de contas com a autonomia democrática das escolas, criando uma hierarquia imposta e terminando por expulsar os docentes da gestão das escolas, onde só participam residualmente. Não admira. Quando o primeiro-ministro teve o arrojo de comparar a escola com o quartel percebe-se a razão pela qual o termo hierocracia é tão utilizado pelos liberais.
Porém, abundou a charada dos negócios, com óbvias implicações para os cidadãos, desde a localização do aeroporto de Lisboa, ou o traçado do TGV, as manigâncias na propriedade da GALP ou da REN, ou a opa-cidade do BCP de imaculada virtude.
As privatizações de monopólios naturais, a que se pode suceder a água, confirmam uma gestão de favor, convalidam a apreciação sobre a natureza rentista da burguesia, e de rajada mostram como as famosas entidades reguladoras são a maior fraude política do capitalismo liberal. São supostas "regular" o mercado e têm tanta eficácia como um semáforo avariado.
A confusão do mercado de capitais, o crime de gravata, guindou o comendador Berardo a estrela de TV, fazendo inveja ao ministro da justiça que bem tentou encher o alinhamento dos telejornais tal o estado caótico do sector.
Chegamos à mais alta taxa de desemprego em duas décadas ao mesmo tempo que se atinge o pico do endividamento das famílias. Os índices de pobreza regrediram mais de uma década.
E o ano não chega ao fim sem um aviso do que será o próximo código de trabalho: liberalização de despedimentos e horários, esvaziamento da contratação colectiva. Tudo em nome do chavão do ano: a flexigurança. As expectativas relativamente à regularização dos imigrantes redundaram num processo a conta-gotas, pese a publicidade.
Ah, mas faltava a presidência portuguesa da União Europeia...
O júbilo lusíada não disfarça o papel notarial do governo no desfecho de um Tratado liberal e militarista, sem sequer recolher um mínimo de legitimidade democrática dos povos, consultados em referendo. Tudo foi feito para evitar a pronúncia dos cidadãos. Aí está a última moda da arquitectura europeia. Será que os cidadãos se revêem na pilotagem da NATO? Na privatização dos serviços públicos? Nos rígidos critérios de défice público? Nas regras do banco central europeu? Num directório dos estados mais fortes?
Os ares europeus do primeiro-ministro levaram-no a reciclar referências. Sócrates reivindica-se agora do "centro" e compara-se a Blair, achando os socialistas franceses "obsoletos" (que horror!). Procura a respeitabilidade na elite económica, tenciona reduzir a expressão do PSD e, de passo, conviver com Belém. Como isso pode parecer muito à direita para tantos socialistas, inventou a publicidade da "nova geração de políticas sociais". Tenha dó! O complemento solidário para idosos está abaixo do limiar oficial de pobreza e não compensa a desaceleração do valor das pensões. O subsídio de gravidez às famílias mais pobres não esconde a desvalorização do rendimento mínimo e de outros mínimos sociais. Guterres cora de vergonha com a "ousadia" das políticas sociais do special one do Largo do Rato.
O afrontamento com o governo faz as sondagens que importam, aquelas que conduzem à rejeição das políticas liberais, e alteram relações de força. As alternativas surgem com forte censura popular.
Luís Fazenda
26/12/2007
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