Dor antes das dez semanas é invenção do Não

09 de fevereiro 2007 - 0:00
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No último programa Prós e Contras o país foi surpreendido por uma novidade absoluta: afinal, «o feto sente dor antes das dez semanas». Na manhã seguinte os Médicos Pela Escolha desmentiram essa afirmação, que vai contra todas as evidência da ciência. Jorge Sequeiros, Presidente do Colégio de Genética Médica e Membro do Conselho Nacional de Ética e Ciências da Vida, explica neste artigo a falácia (mais uma) dos defensores do Não.  



Ciência, convicções, fraude e a dor fetal



Em artigos publicados em revistas científicas (e não meras opiniões não fundamentadas, em debates televisivos), alguns têm defendido que o feto nunca sente dor. Nunca, até ao fim da gravidez. Muito provavelmente, isto não é verdade. Não é crível que assim seja. Às 24 semanas estão já estabelecidas as ligações entre o tálamo e o córtex que permitirão ao feto estabelecer contacto com o mundo exterior e sentir. Todas as mães (e muitos pais) sabem que o seu feto (bebé, criança é só quando nasce!) reage a estímulos nos últimos 3 meses da gravidez. Reage com movimentos ("pontapés") a carícias dos pais, tranquiliza-se com a voz de ambos, com música agradável.



Os receptores nervosos começam a formar-se logo entre as 8 e as 15 semanas, mas são como tomadas sem corrente num edifício em construção; a electricidade só é ligada quando passa ser habitado. Ou seja, depois das 24 semanas. Muito provavelmente só às 30, quando a EEG mostra que o feto já consegue estar "acordado".



A evidência científica actual é a de que a dor implica percepção e consciência do estímulo doloroso. A dor é uma experiência emocional e psicológica, resultado de activação cortical. A reacção a estímulos externos, às 8 semanas, é um reflexo primitivo, que pode existir com estímulos não dolorosos. Como a nossa perna salta quando o martelo bate no joelho. É resultado de um curto-circuito entre receptores e músculos, através da medula espinal, sem passar pelo cérebro. Sem vontade e sem consciência. Sem dor.



O feto de 10 semanas não tem dor, não tem vontade, não tem vigília, não tem consciência. As primeiras ligações ao córtex cerebral em formação, acontecem entre as 23 e as 30 semanas. Mas anatomia é diferente de função. A evidência mais precoce de actividade cortical é entre as 29 e as 30 semanas.



Numa área cientificamente controversa, em pleno calor de uma campanha, afirmações não comprovadas (pseudo-científicas) são tudo menos honestas e responsáveis. Não há argumentos científicos neutrais. O que há são dados científicas, que passam o rigor da comprovação, da revisão por pares antes da aceitação por revistas internacionais. E mesmo estes estão sujeitos a um escrutínio permanente por parte de novos estudos.



A Organização Mundial de Saúde aconselha mesmo que se não deve dar anestesia ao feto antes do 3º trimestre para cirurgia ou abortamento. Por não estar provado que o feto sinta dor nos seis primeiros meses (muito pelo contrário) e pelos riscos aumentados para a grávida. As afirmações em sentido contrário ao estado actual dos conhecimentos, são apenas poeira lançada aos olhos de quem já não quer ver. São convicções e crenças de quem toma partido.



Provada, essa sim, está a dor das mulheres que sofrem as complicações de saúde e as consequências legais dos abortamentos clandestinos. E há que tentar acabar com ela, como tem vindo a suceder em tantos outros países.



Aos dogmas o "não" acrescentou a fraude e a argumentação pseudo-científica. O papel da ciência é fazer perguntas e pôr dogmas em causa, desconstruir mitos e crenças e fortalecer as nossas convicções.



Pela minha parte, estou cada vez mais convicto. Por isso só poderei votar SIM.



Jorge Sequeiros

Médico Geneticista, Presidente do Colégio de Genética Médica e Membro do Conselho Nacional de Ética e ciências da Vida.

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