Portugal na Europa do Sul – da crise de 1890 ao sonho republicano: Pátria, Império e República
Resumo:
Finis Patriae (1890) é o título de um dos poemas mais genuinamente patrióticos de Guerra Junqueiro, o “poeta da República”, escrito há pouco mais de um século, em plena crise nacional e internacional do sistema capitalista e imperialista/colonialista. Ele é um bom indicador – a par da obra do caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro -, da crise mental que as elites portuguesas viveram na mudança de século.
1890 o ano da maior crise do regime político monárquico-constitucional e do maior abalo do sistema económico liberal português: a primeira havia de desembocar no levantamento republicano falhado de 31 de Janeiro no Porto, duas décadas antes da implantação da República; o segundo, numa profunda alteração do modelo económico nacional, livre-cambista, fomentado por Fontes Pereira de Melo desde 1851.
Impedido de manusear a seu belo prazer os habituais “fundos de compensação” (constituídos basicamente por remessas de emigrantes brasileiros e por exportação de mão-de-obra negra para as minas do Rand), o Estado português entrou em bancarrota (1891-1892). A economia portuguesa tornou-se incapaz de exportar e a burguesia nacional impôs (através do Estado oligárquico) uma política proteccionista, consubstanciada na célebre Lei dos Cereais (para responder ao “pão dos pobres” e aos lucros dos latifundiários) e numa pauta aduaneira proteccionista dirigida aos interesses dos “sectores industriais nacionais”.
Porém, o frágil mercado interno impedia um desenvolvimento industrial com capacidade de crescimento e modernização. Chegava assim o tempo dos “africanistas”: ideólogos e agentes da “pacificação” em África. A burguesia portuguesa via no novo “eldorado africano” o território ideal para a extensão do mercado nacional.
Ficara encalhado, em 1891 e nos anos seguintes, o problema político. A Monarquia Constitucional mostrou-se incapaz de resolver o complicado problema de modernização da sociedade portuguesa e impediu, enquanto pôde, a expressão política legal das novas camadas sociais nascidas da tímida industrialização e do funcionalismo público em crescimento.
Acantonadas em pequenos redutos urbanos, especialmente no Porto e em Lisboa, essas novas camadas sociais irão exprimir-se, de forma revolucionária, em 5 de Outubro de 1910, numa complexa frente política e ideológica que escondeu no seu seio, até muito tarde, correntes republicanas de toda a ordem, correntes socialistas moderadas e correntes anarquistas e libertárias. Herdeiras do profundo debate político que acompanhou as duas décadas do estertor da Monarquia, idealizaram uma democracia avançada, de cidadania plena, onde não houvesse lugar para privilégios de pessoas ou corporações, pugnaram pela laicização do Estado e da sociedade e imaginaram mesmo um Estado que interviesse na distribuição da riqueza nacional e promovesse a igualdade social. Este programa foi, contudo, um sonho breve que os ditadores militares interromperam por mais de meio século, invocando a ingovernabilidade da República e a sua incapacidade para promover o desenvolvimento económico.
Parte I – Introdução
Nota: Uma incursão na História de há mais de um século, sobre uma das crises mais agudas do capitalismo na fase de lançamento do moderno imperialismo saído da Conferência de Berlim de 1884-1885, centrado sobre a Ásia e a África. Que sentido faz?
Num pequeno ensaio sobre a “História”, José Mattoso diz que é “muito difícil fugir à História como “mestra da vida”. Concordo plenamente. Como ele diz “a História sempre serviu para distinguir o bem do mal”.
Evidentemente que estamos numa nova fase do capitalismo globalizado e num estádio social e civilizacional diferentes, que exigem novas adaptações, novas abordagens e novos conceitos operativos – para uma nova praxis. No entanto ainda hoje nos reconhecemos nos conceitos de capitalismo, de crise, de democracia (liberal ou avançada), de direitos políticos e sociais, de revolução social e política, etc.
Tudo tem um antes e um depois e o que aconteceu “não pode ser repetido nem provocado, de forma a voltar a acontecer” – ainda José Mattoso quem o diz.
Então para quê a História? Para descrever o que aconteceu e para explicar porque aconteceu assim, já que da História não podemos nunca afastar o livre arbítrio e a Humanidade. Também para podermos ajuizar onde estivemos bem e onde estivemos mal, porque a “inteligência histórica” não pode afastar o juízo filosófico sobre o bem e sobre o mal. Especialmente hoje, depois de termos afastado de nós a ideia de “progresso contínuo” da humanidade. Sem pretender produzir qualquer juízo moral sobre a acção dos homens e mulheres de há um século, compreender as suas acções há-de sempre ajudar-nos a compreender os dias difíceis que vivemos. E porque os vivemos desta maneira.
Texto 1 - Introdução
A crise de 1890-1891 – foi o início de um ciclo de longa duração que se desencadeou com o Ultimato inglês de 1890, com a bancarrota parcial de 1891-1892 e com a crise da monarquia constitucional e do rotativismo partidário e que só terá um fim com a Revolução de 25 de Abril de 1974, marcada pelo estertor da estratégia imperial (com a descolonização), pelo advento de uma democracia de massas (com o sufrágio universal) e pela abertura do país ao mundo (através da integração na Europa e nas instâncias internacionais).
São cerca de oito décadas, marcadas por uma política autárcica, por uma estratégia imperialista e por uma contenção das lutas sociais e políticas em regime de ditadura, embora com períodos de abertura política e económica tímida – durante a I República e nos anos 50, depois da II Guerra Mundial.
Neste ciclo longo, destacam-se três períodos diferenciados: 1º Crise da Monarquia Constitucional (1890-1910) – apesar de tudo um longo período de agonia de duas décadas em que se forjam algumas das “soluções” económicas e políticas que hão-de desabrochar durante os períodos seguintes; 2º A I República (1910-1926), um período de 16 anos que se constituiu como um laboratório político e cujo desfecho ditatorial resultou de uma intensa luta política entre a direita e a esquerda modernas, nos anos 20; 3º A Ditadura Militar e o Estado Novo (1926-1974), consumação corporativa e fascizante que resultou de uma guerra civil intermitente de quase uma década e da vitória das doutrinas totalitárias que marcaram a Europa entre guerras, muitas delas forjadas nos finais do séc. XIX.
Embora mais claras nos seus contornos políticos e sociais – a 2ª e 3ª fases deste longo período de oito décadas não são, porventura, mais interessantes do que a Crise da Monarquia Constitucional.
Ora, é sobre este período que iremos debruçar-nos.
Parte II – A crise de 1890
Texto 2 – A crise de 1890 – crise do modelo económico livre-cambista e crise do sistema político rotativista. Crise do liberalismo.
A crise de 1890 desencadeou vários acontecimentos marcantes, eles próprios indícios de fenómenos económicos, políticos, sociais e culturais que atravessavam o país em profundidade. O que desencadeou mais impacto público foi o Ultimato inglês, quer porque evidenciava a crise política do regime constitucional monárquico (que se mostrou incapaz para dar resposta à imposição britânica), quer porque deixava a claro as fraquezas económicas e financeiras do Estado (incapaz de garantir a posse efectiva e o desenvolvimento do Império Africano por falta de meios), quer ainda porque instalava no país o tumulto e a revolta, (vindo dos de “baixo” e apoiado por muitos dos de “cima”), fontes de mobilização das oposições políticas e dos movimentos populares que irão dar origem à “frente republicana” responsável pela Revolta de 31 de Janeiro de 1891 no Porto e, mais tarde, à revolução de 5 de Outubro de 1910 em Lisboa.
O projecto inconsistente do “Mapa cor-de-rosa” pôs em confronto as pretensões africanas de Portugal com o projecto imperialista da poderosa Inglaterra. O “Memorando” que impôs a retirada das tropas portuguesas do território entre Angola e Moçambique (actual Zimbabwe) foi sentido como um vexame nacional e uma oportunidade perdida, depois dos esforços dos exploradores africanos das décadas anteriores. Foi considerado pelas elites (conservadoras e progressistas) um “vexame nacional inominável”. E pelo movimento popular como uma fonte de descrédito dessas mesmas elites nacionais.
Nos dias a seguir ao Ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890, foram os republicanos (e muitos liberais progressistas) os que melhor capitalizaram o descontentamento das massas populares, em comícios e manifestações de rua que anunciavam o fim do rei e da Monarquia.
O Ultimato conduziu o país a um conflito diplomático com a Inglaterra que os governos da Monarquia não conseguiram resolver de forma aceitável. Em Lisboa e no Porto sucederam-se durante todo o ano de 1890 tumultos populares. São tumultos populares (impostos ou consentidos) que têm na base o descontentamento da nova “plebe urbana” criada pela segunda revolução industrial e de “cima” o apoio das elites progressistas, maioritariamente republicanas e da notabilidade liberal descontente com a incapacidade de resposta da Monarquia constitucional.
Dando resposta à indignação patriótica generalizada, uma nova geração de republicanos – de estudantes, jornalistas e militares de baixa patente, pequenos comerciantes, intelectuais, representantes das profissões liberais, funcionários do Estado – tomou a rédea dos acontecimentos e dirigiu um movimento conspirativo que culminou na primeira revolução republicana no Porto, em 31 de Janeiro de 1891. Como em 1910 em Lisboa, também no Porto teve papel relevante o movimento popular que se manifestou na força determinante de cabos e sargentos no deflagrar da revolução. Vencidos pela Guarda Municipal, os revolucionários serão julgados, condenados e deportados, tendo um importante núcleo conseguido exilar-se em Madrid.
Por outro lado, a crise crónica que atingiu o sistema financeiro português na segunda metade do séc. XIX, associada à crise financeira internacional, desembocou em 1891-92 numa bancarrota parcial e numa crise do sistema constitucional, obrigando o rei à nomeação de quatro governos extrapartidários, à aprovação de uma excepcional lei de meios no ano económico de 1891-1892 e à também excepcional autorização de empréstimos por decreto para solver as pesadas dívidas interna e externa acumuladas.
A crise do sistema financeiro internacional em 1890 agudizou o peso da dívida do Estado português, obrigado a socorrer bancos e companhias à beira da falência, como aconteceu com o Montepio de Lisboa e, em 9 de Julho de 1891, a suspensão das notas de banco foi prolongada sine die, iniciando-se o “curso forçado”. O câmbio ruiu e, a partir daqui, a paridade da moeda portuguesa em relação à libra esterlina não mais deixou de desequilibrar-se. Os juros da dívida levavam, por esta altura, cerca de 40% das despesas do Orçamento de Estado.
Em Junho de 1892, o governo de José Dias Ferreira declarou que o Estado não poderia pagar a totalidade dos juros da dívida. Este alívio conduziu a um descrédito generalizado juntos dos credores e a dificuldades acrescidas do crédito nos anos seguintes.
Nestas circunstâncias, a governabilidade e a estabilidade governativa tornaram-se um problema para o regime monárquico. Em 1893, a meio de uma crise financeira que ameaçava o país de uma nova bancarrota, o Partido Republicano elegeu três deputados para as Cortes, introduzindo ruído no sistema rotativo. No entanto, a pedido do governo, o rei dissolveu o Parlamento e marcou eleições para Março de 1894.
Oliveira Martins, um arauto da “Vida Nova” (a notabilidade descontente do sistema), afirmava: “Governe enfim o rei, porque só o seu governo pode disciplinar os espíritos, moralizar a sociedade, assegurar o respeito pela autoridade, salvar, enfim, a Pátria dos desastres a que o governo dos partidos a sujeitou”. Era a defesa de um autoritarismo que nunca mais deixou de estar presente até à consumação de 1926-1933.
Em Novembro de 1894, as Cortes foram encerradas pelo rei com o pretexto de pretender aperfeiçoar a vida parlamentar. E só viriam a ser reabertas em Janeiro de 1896. Viveu-se, assim, “em ditadura”. Era a revolução “desde cima”, proclamada pelo rei e pelos líderes regeneradores Hintze Ribeiro e João Franco. Esta foi, de facto, a primeira ditadura de João Franco. A oposição chamava-lhe a “Pagodeira”.
Texto 3 – Que país era Portugal em 1890?
Politicamente – Portugal era uma monarquia constitucional oligárquica, que se manteve relativamente estável entre 1851 e 1890 graças a sistemas eleitorais restritos (em 1890 podiam votar 17% dos portugueses masculinos, contra taxas de votantes que variavam entre os 50% e os 90% na Europa do Norte e nos EUA), graças a um sistema partidário rotativo em que apenas mudavam as caras dos governantes, a eleições facilmente controláveis pelo cacicato local e graças ainda ao recurso à “ditadura”, sugerida pelos governos e decidida pelo rei. Na prática era o rei que decidia sobre a sorte dos governos, assumindo o ónus do poder executivo (não é assim de estranhar o regicídio de 1908…). O Partido Socialista e o Partido Republicano (fundados entre 1875 e 1876), representando as novas classes urbanas (profissões liberais, intelectualidade, professorado, funcionalismo público, pequenos comerciantes e industriais) tiveram sempre escassas hipóteses de ser integrados no sistema parlamentar, excepto a partir de -1906- 1908 (no caso dos republicanos – 5 deputados em 1908), por força da crise profunda da Monarquia (não será assim de estranhar a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910…). Esta estabilidade da Monarquia Constitucional deve, no entanto, ser vista com alguns cuidados: de facto, houve 47 eleições em 90 anos. Só a intervenção “moderadora” (=governativa) do rei, demitindo governos, fechando o Parlamento e governando em ditadura, pôde manter este artificial equilíbrio do “centrão” rotativo.
Economicamente – o livre-cambismo da 1ª fase do rotativismo (Fontismo) permitiu um sistema relativamente aberto ao Exterior (Inglaterra sobretudo); no entanto, Portugal chegou atrasado à segunda revolução industrial, depois de meio século de dominação estrangeira e de guerras civis duradoiras para implantar o liberalismo. Exportava produtos com fraco valor acrescentado (vinhos, casulo do bicho da seda, citrinos, carne e cortiça), contra produtos manufacturados, sobretudo tecidos ingleses. O deficit comercial instalou-se de forma crónica, sendo as importações superiores às exportações em percentagens que variavam dos 50% aos 150%. Naquela altura (como hoje) era comum considerar-se que as elites portuguesas e o Estado viviam acima das suas possibilidades… (demagogicamente ou através do senso comum: os portugueses viviam acima das suas possibilidades). Onde já ouvimos isto?
Para garantir as importações, o Estado devia socorrer-se de “compensações” que passavam, fundamentalmente, pela exportação de mão-de-obra e pelas remessas dos emigrantes (o “negócio do século”, como era considerado), pela reexportação de produtos coloniais (incluindo a mão-de-obra moçambicana para o Rand) e pela realização de empréstimos internacionais (que eram obtidos em troca da compra de equipamentos e serviços e pela cedência de concessões, na metrópole e nas colónias – mais uma vez à Inglaterra sobretudo).
Social e culturalmente – o país era essencialmente rural, com excepção de Lisboa e Porto que, de forma tímida, iniciaram uma urbanização moderna (incluindo já aí os “bairros de lata do Barreiro e de toda a periferia de Lisboa” ou os “buracos de Monsanto”, por efeito da industrialização (transportes, construção civil, comunicações…) e da crescente funcionalização do Estado, sobretudo a partir da última década do séc. XIX).
A distância entre as elites, pouco numerosas contudo, e a esmagadora maioria da população portuguesa é abissal: separam-nas a iliteracia/analfabetismo que cobria cerca de 80% dos portugueses por volta de 1880, impossibilitados portanto de votar (daí que uma das apostas dos republicanos fosse a revolução no ensino). A modernização das instituições tradicionais (por exemplo a Igreja) é dificultada por esta ruralização e por esta iliteracia esmagadoras. Fenómenos de modernização/laicização como por exemplo o “registo civil” (que outras sociedades realizaram com menos traumas), são no país motivo de luta ideológica e factor de mobilização política (dos ultramontanos e dos jacobinos).
Parte III – A superação da crise
Texto 4 – Um novo modelo económico – autarcia, nacionalismo e imperialismo/colonialismo
Em 1891, as dificuldades de exportação (mais do que a necessidade de substituição de bens) – de mão-de-obra, de emigrantes, de produtos agrícolas – levam as elites a dirigir-se para uma política de desenvolvimento voltada para o mercado interno, se possível alargado ao mercado colonial, (quase inexistente por esta época: basta dizer que em 1912 havia em Angola 7000 portugueses da metrópole).
No entanto, estes produtos voltados para o mercado interno e colonial são oriundos de sectores não competitivos a nível internacional e derivam da transformação de produtos agrícolas ou do mar e de algumas matérias-primas coloniais. Algumas delas, como o cacau de S. Tomé, são reexportadas directamente para os mercados europeus.
Entre os sectores de transformação estão as conservas de peixe, cortiça em obra, citrinos e conservas de fruta. O sector têxtil (apesar de alguns núcleos importantes na Covilhã ou no vale do Ave), nunca conseguiu competir com o exterior e, por isso, nunca descolou de uma produção que associava a fábrica ao trabalho familiar à peça.
O melhor exemplo para traduzir esta incapacidade de industrialização é, sem dúvida, a do arranque das indústrias pesadas. A implantação da siderurgia foi discutida ao longo da 2ª metade do séc. XIX, mas nunca saiu do papel. Os investidores sempre exigiram uma forte protecção do Estado. Quando o conseguiram (Champalimaud já em 1961), foi com o apoio do Estado e numa altura em que o baixo patamar de partida já não permitia qualquer tipo de confronto com a concorrência internacional. A Siderurgia Nacional (um elefante branco…), nunca foi auto-sustentável e morreu duas décadas depois do seu aparecimento e um século depois das grandes siderurgias europeias terem aparecido.
Perante estas dificuldades internas e de participação no mercado internacional – avolumadas pela crise financeira e pela dificuldade de obter as habituais “compensações” -, o país inteiro (não só as elites, mas igualmente o operariado e o funcionalismo), voltam-se para a defesa de uma política autárcica, reivindicam o proteccionismo do Estado e fixam-se, de forma quase mítica, na ideia da criação de um “eldorado africano” – fundação dos “novos brasis em África”.
Neste sentido, refiram-se três medidas emblemáticas – a publicação da “Lei dos Cereais (Elvino de Brito, 1899), acompanhada da criação do “pão político”; a publicação da Pauta proteccionista de 1891; e o início das “campanhas de pacificação” em África.
Nenhuma delas permitiu o “salto” desejado do desenvolvimento do país, embora tenham permanecido em vigor mesmo durante a República. A “Lei dos Cereais” potenciou o latifúndio alentejano e a agricultura extensiva, com empobrecimento dos solos e produção cara, face aos preços do mercado internacional; o “pão político” (resultante de uma compensação paga pelo Estado aos moageiros e à panificação), não tornou o pão melhor nem mais barato, antes fez crescer um importante sector que dependia inteiramente do Estado e que, durante a República havia de concorrer para a sua queda, quando o regime, por absoluta necessidade de correcção das contas públicas decidiu acabar com o “pão político”. A Pauta proteccionista de 1891, potenciando indústrias voltadas para o mercado interno – ele próprio pobre e reduzido -, aprofundou a baixa produtividade, pulverizou os sectores industriais (a fabriqueta do vão de escada) e impediu a modernização tecnológica. As “campanhas de pacificação” (leia-se a guerra contra as populações coloniais) e a concomitante “ocupação” ficou reduzida a uns quantos actos heróicos de Mouzinhos e outros; não fora a I Guerra Mundial (e as expedições de Roçadas e Pereira d`Eça aos Cuamatos), com auxílio dos ingleses e uma mobilização forçada do país (1914-1918), a pacificação/ocupação ficariam (como de facto ficaram…) adiadas para a verdadeira “recolonização” dos anos 50, quanto em África já sopravam os “ventos da descolonização” e da luta armada. Também aqui Portugal chegou tarde (provavelmente para bem dos africanos…).
Texto 5 – Crise do sistema oligárquico: do rotativismo aos governos de ditadura
Perante a crise económica e financeira – traduzida em falta de meios de pagamento do Estado e dos particulares, em diminuição das importações e das exportações, em diminuição do crédito -, fácil se torna perceber a crise do sistema oligárquico montado pela Monarquia. Os anos da passagem do século foram também os anos do fim. O rei D. Carlos foi optando por sucessivos períodos de governação em ditadura (com as Câmaras encerradas), os dois partidos do rotativismo (Regeneradores e Progressistas) cindiram-se em dois outros partidos (a dissidência do Partido Regenerador Liberal (1901) de João Franco, a partir do Partido Regenerador, e a Dissidência Progressista (1905) de José de Alpoim, a partir do Partido Progressista), as leis eleitorais tenderam a restringir as representações políticas novas (a “Ignóbil Porcaria”(1901), de Hintze Ribeiro, consegue afastar os Franquistas e os Republicanos das eleições de 1901).
Tardava a modernização do Estado, sentida por liberais e republicanos como um crime contra o país: assuntos como a laicização do Estado e da sociedade, a educação pública, a descentralização administrativa, a representação partidária das oposições, a liberdade sindical, entre outros, foram acantonando e radicalizando a sociedade em dois pólos opostos de liberais e republicanos/socialistas versus conservadores e ultramontanos. Aos olhos de uns, os conservadores tendiam para reeditar a aliança do trono e do altar do antigo regime; aos olhos dos outros, os liberais e republicanos, preparavam-se para a revolução social, reféns que estavam da “rua tumultuária”. As clivagens políticas e sociais aprofundaram-se em torno de questões políticas muito concretas: a questão religiosa; a questão operária; a questão político-partidária; a questão dos gastos excessivos da coroa.
Nestas condições, a política saiu à rua. Liberais, republicanos e socialistas (unidos ou separadamente) multiplicaram os centros cívicos, atearam a imprensa e a “rua” com novas folhas e marchas cívicas e recrutaram centenas de novos aderentes para os seus partidos, alguns notáveis oriundos do campo monárquico. Os comícios tornaram-se comuns e monumentais, mobilizando milhares de pessoas em torno da causa política, especialmente a partir do início do séc. XX. O mundo operário, acossado pela crise e movido pelas ideologias anarquista e libertária, sem meios de expressão política e social (direito ao voto ou direito à greve) mostrava-se tumultuosamente em actos de violência de rua. Foi neste contexto que em 1897 surgiu a Carbonária, um braço armado da revolução social das classes médias urbanas mais avançadas (pequenos burgueses, funcionalismo público, intelectualidade, estudantes, baixas patentes das forças armadas e elites operárias)
A instabilidade governativa, a mobilização cívica e a violência política tornaram-se comuns nestas circunstâncias. Em períodos de ditadura (encerramento das câmaras) os governos tendiam à repressão violenta, à deportação e à censura da imprensa. Foi neste clima de fragilidade do Estado e das instituições (e também de profunda crise económica, social e cultural) que começou a gerar-se no espírito das elites pequeno-burguesas e do funcionalismo urbano a solução revolucionária republicana – um paradoxo numa Europa de monarquias (exceptuando a França e a Suíça).
Parte IV – O advento da Revolução republicana
Texto 6 – Da Monarquia decadente à República regeneradora – Pátria, República e Império
A I República, implantada em 1910, foi um regime “avançado”, com alguns dos seus actores inspirados por ideologias socialistas, libertárias e de “livre-pensamento” ou então liberais e democráticas. Muitos deles beberam essas ideologias no denominado longo período da “propaganda” – foi a geração da Propaganda -, onde tudo parecia possível. Conceberam uma visão avançada de democracia com voto universal (que depois nunca seria aplicado); prepararam (em conjunto com as associações de mulheres republicanas) as chamadas “Leis da Família”, uma Lei da Separação do Estado da Igreja igualmente avançada (e aplicada, apesar das profundas reacções da sociedade tradicional), um ensino primário universal e gratuito (embora escassamente realizado nas condições materiais daquele tempo), umas forças armadas milicianas (contra a vontade e a reacção violenta dos meios castrenses), uma descentralização/municiplaização do território e administração (depois contrariada pelo centralismo do Estado central), entre outras medidas avançadas, caso fossem aplicadas a uma sociedade rural e arcaica como a portuguesa.
No entanto, nunca deixaram de ser uma minoria, inspirada pelo positivismo progressista de raízes iluministas, senão mesmo de inspiração socialista moderada. Para acrescentar as suas dificuldades governativas, herdaram da Monarquia em estertor uma pesada herança financeira, económica e social: um país com uma economia débil, com umas finanças apresentando vários défices crónicos e uma sociedade maioritariamente tradicionalista, rural e analfabeta. Nestas circunstâncias, a sua governação mostrou-se incapaz de alterar a política económica e financeira herdada, apesar dos esforços de integração do país no quadro da Europa do seu tempo, nomeadamente através do intervencionismo na I Grande Guerra (embora com custos políticos negativos indiscutíveis).
Sedimentada em tempos de descrença e de crise nacional, a sua ideologia embebeu-se de um acrisolado patriotismo e manteve (ou até aprofundou) a crença na construção de um espaço continental e colonial integrado, embora repensado na perspectiva de uma autonomia progressiva das colónias e de uma independência inevitável no tempo longo.
No seu conjunto – os 16 anos da República -, constituíram um período relativamente longo de uma nova experiência política: um verdadeiro laboratório de ensaio das elites portuguesas, antes de ter sido absorvida, depois de uma guerra civil intermitente, pela implacável ditadura militar e civil que destruiu o regime liberal ou qualquer outra tentativa democrática de exercício do poder.
Duas palavras para falar nas organizações do operariado. À esquerda do Partido Republicano, o Partido Socialista Português, que conduziu o operariado nas suas lutas contra a carestia de vida nos finais do séc. XIX, nunca conseguiu um representante no Parlamento. Daí que a forma de expressão do operariado e do cada vez mais numeroso funcionalismo de Estado - as greves -, ilegais durante a Monarquia, tivessem tendência para acabar em confrontos com as autoridades, em repressão, em prisões e deportações e em respostas de acção directa – boicotagem, sabotagem, tumultos e terrorismo.
Desde 1908/1909 apoiam, sob condições, a implantação da República por processo revolucionário e, a partir de 1910, implantada a República, estarão na primeira linha das exigências por uma sociedade igualitária. De 1910 a 1913 a luta reivindicativa é poderosa e o divórcio com a república burguesa consumou-se. Mesmo para um socialista como Alfredo Ladeira, representado nas Constituintes e na I Legislatura, a greve só é justa se não puser em causa o regime republicano. De 1908 a 1933, o republicanismo e o sindicalismo livre seguirão caminhos paralelos, mas marcados por estreitas convergências.
Texto 7 – Conclusões
1ª As elites portuguesas – como as de toda a Europa do Sul -, mostraram-se incapazes de promover a transição de um regime oligárquico para uma democracia de massas. Esse processo ocorreu num tempo longo, intermediado por longas ditaduras políticas;
2ª A crise de 1890 – primeiro sinal da falência do sistema liberal oligárquico e de um capitalismo periférico como era o português -, potenciou uma resposta autárcica, nacionalista e imperialista/colonial, numa altura em que a Europa procedia a uma redivisão do mundo;
3ª A 2ª revolução industrial (embora débil em Portugal) promoveu o aparecimento de novas classes sociais e de novos partidos políticos. A plebe urbana de Lisboa e Porto e as classes médias resultantes da burocratização do Estado e do desenvolvimento das classes liberais irromperam na política, mas foram impedidas pelas oligarquias dominantes e tradicionais na sua intervenção;
4ª As elites oligárquicas mantiveram-se imunes a qualquer reforma do sistema. Só uma minoria se deslocou para uma visão democrática do futuro. A maioria concebeu, por esta altura, os primeiros lampejos do autoritarismo moderno e do corporativismo (associados nalguns casos ao regressismo a formas de antigo regime) para dar resposta ao republicanismo, ao socialismo, ao associativismo operário e às ideias anarquistas e libertárias;
5ª A I República – nascida do apodrecimento das instituições monárquicas -, emergiu de uma revolução esperada. Amadurecida a “Ideia” republicana num período de decadência institucional, ela apareceu embebida num projecto nacional, patriótico, democrático, modernizador e europeísta (mas também imperialista e colonial) que agregou uma “frente” forte e diversa, constituída por liberais, republicanos, socialistas e mesmo anarquistas e libertários.
No entanto, a herança autárcica e imperial, num capitalismo periférico, nunca foi alterada no essencial e perdurou até à Revolução de 25 de Abril de 1974.