Um dia talvez comece por gritar que ela não presta

porJoana Mortágua

07 de março 2018 - 23:10
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Este texto é sobre a dificuldade de explicar a um miúdo do oitavo ano por que razão o homem que daqui a uns anos será poderá, um dia, fazer mal à mulher de quem gosta.

Durante os últimos meses estive em várias escolas para apresentar conferências sobre igualdade de género. Em algumas, para crianças de 12 anos; noutras, para adolescentes de 17. Às vezes, tudo junto. Do Porto a Setúbal, lá enfrentei salas mais modestas ou auditórios mais apinhados da audiência mais difícil que já encontrei: miúdas e miúdos de olhar desafiador ou simplesmente desinteressado. Posso dizer que passei a respeitar ainda mais o trabalho dos professores, mas esta crónica não é sobre isso.

Este texto é sobre a dificuldade de explicar a um miúdo do oitavo ano por que razão o homem que daqui a uns anos será poderá, um dia, fazer mal à mulher de quem gosta. Que um dia talvez comece por gritar-lhe que ela não presta, ou por fiscalizar-lhe atentamente a roupa antes de sair de casa. E que, nessa altura, as razões que ele hoje não encontra surgirão com o desembaraço das ideias que trazemos dentro. E que, quando tudo isso for a sua rotina, um dia, ele acabará por lhe levantar a mão e, descendo-a, marcá-la-á pela primeira vez.

Este texto é sobre a dificuldade de explicar a miúdas do 10º ano por que razão mulheres, como aquelas que um dia serão, conseguem aguentar vidas arrastadas pela violência. Que se por coragem não é, tão- -pouco lhe podemos chamar cobardia. Que, pouco a pouco, a incompreensão cede à dormência. Que o medo constante, a culpa autoinfligida e o isolamento surgem com o desassombro das ideias que nem demos por nos terem posto dentro.

Invariavelmente, e seja qual for o tamanho da sala, o silêncio cola-se às paredes quando falo da sentença do juiz Neto Moura. É neste momento que a maior parte dos olhos se focam em mim, incrédulos. A ingenuidade dos queixos caídos soa remotamente a esperança. E é por isso que este texto também é sobre a urgência de contar a todos os miúdos e todas as miúdas deste país que, nos últimos 14 anos, houve 472 pessoas assassinadas por serem mulheres.

Como sempre, o mais complicado é explicar porquê. Que sim, também há homens que apanham (como os rapazes fazem questão de lembrar), mas que não, não é a mesma coisa (como as raparigas às vezes aplaudem). Que isto não é uma guerra de géneros, mas antes a expressão mais violenta de uma desigualdade normalizada nos gestos mais simples do dia-a-dia.

Recorrendo aos exemplos que nos vão chegando dos noticiários, lá vou relatando as sentenças, as estatísticas, as debilidades dos tribunais e a fragilidade de uma justiça que teima em ter género. Mas é pouco. Eles querem, e eu preciso, de saber porquê. E aí as suas vidas entram no debate. O que faz a mãe, como é educado o irmão, os brinquedos das crianças, as cores da roupa, o desporto e os estudos. Como tudo, mas mesmo tudo, nos enreda nos papéis que escreveram para nós do que é ser homem e ser mulher.

Quando uma miúda levanta o braço e eu lhe passo a palavra, indigna-se com a moralização da sexualidade de acordo com os géneros: homens-garanhões e mulheres-galdérias, quem nunca ouviu isto? O que é o assédio? Aos rapazes, tento explicar que ser culpado e ter culpa não é a mesma coisa, foram educados assim. A cultura, sempre a cultura.

Têm 15 anos em média. Rapazes e raparigas. Para muitos (40%), se alguém impede o namorado ou a namorada de se vestir de determinada forma, isso não é violência. Não é uma agressão corporal se dela não resulta uma ferida ou uma marca (8%). Já a violência sexual – forçar beijos em público, pressionar ou coagir para ter relações sexuais, por exemplo – é legitimada por um quarto dos 4 mil inquiridos num estudo da UMAR.

Quando lhes dizemos que controlar o Twitter da namorada ou exigir a pass do Facebook não é normal, olhares agitam- -se. Mas a esperança permanece: talvez tenhamos feito a diferença. Talvez tenhamos dito a coisa certa.

Amanhã é Dia da Mulher. Já sabemos que o número 8 desenhado no calendário de março não muda nada. Que acabe a impunidade, e já teremos feito alguma coisa. Mas só quando acabar o machismo, só nesse dia, entrarei numa escola sabendo que nenhuma daquelas miúdas virá a ser uma mulher espancada pelo homem em que se transformou algum daqueles miúdos.

Artigo publicado no jornal “I” a 7 de março de 2018

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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