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Thomas Shelby explica o capitalismo dos super-ricos

Num episódio de Peaky Blinders, quando o gangster Thomas Shelby começa a acumular demasiado dinheiro, este explica como faz para o "depositar" em toda a segurança e rentabilidade: comprar muitas casas.

Num episódio de Peaky Blinders, quando o gangster Thomas Shelby começa a acumular demasiado dinheiro, este explica como faz para o "depositar" em toda a segurança e rentabilidade: comprar muitas casas. Esta é a explicação perfeita para a atual crise do preço da habitação: os super-ricos açambarcam as casas num mercado global. Mas não é só isso, a última década acentuou o capitalismo dos super-ricos. E os super-ricos querem comprar bens, a começar pelas casas. A inflação é em parte resultado da sua voragem de compras e dos lucros crescentes das suas empresas. Vejamos como.

As taxas de juro baixas e a pandemia criaram o mundo dos super-ricos

Em 2008 a economia mundial colapsou com a crise do crédito subprime. O motivo? Os trabalhadores norte-americanos precisam de casa para viver, tinham salários baixos ou desemprego e a forma de lhes suprir esta necessidade foi vender-lhes casa com recurso a crédito que não podiam pagar. Para agravar, a banca inventou mil negócios sobre esses produtos de crédito. Quando explodiu arrastou consigo a economia mundial.

Desde a saída da crise subprime - e até há alguns meses - vivemos com taxas de juro baixíssimas ou negativas. Aparentemente isso beneficia a classe trabalhadora, nomeadamente no seu acesso à habitação. Mas não é verdade. O facto das taxas de juro serem baixas significa que o preço das habitações subiu porque é ajustado à capacidade financeira do comprador. Logo, progressivamente, os trabalhadores compraram casas bastante inflacionadas ancoradas num crédito cuja prestação agora dispara.

Mas a taxa de juro incrivelmente baixa construiu um mundo novo, o mundo dos super-ricos. Por exemplo, Elon Musk - que agora ataca a Reserva Federal dos EUA por subir a taxa de juros - em 10 anos multiplicou a sua riqueza por 100. Agora comprou o Twitter por 44 mil milhões de dólares, recorrendo a um empréstimo de 13 mil milhões. Teoricamente, taxas de juro baixas dinamizam a economia, promovem o investimento e criam emprego. A realidade do Twitter: despedimento massivo.

Ainda mais exemplificativa do novo estado do capitalismo é o caso de Bernard Arnault que é agora a pessoa mais rica no planeta. Trata-se do CEO da LVMH que comercializa champagne Moët & Chandon, malas Louis Vuitton e toda uma vasta panóplia de marcas de luxo. O crescimento dos super-ricos na última década foi tão grande e o seu consumo tão expressivo e impactante na construção do mundo, que o super-rico número um vende bens a outros super-ricos e ricos. A teoria liberal está certa, a lei da oferta e da procura molda o universo... mas não para a supressão das necessidades da sociedade.

Esta é a história da última década: mega-empréstimos, dinheiro barato e fácil, "venture capital", unicórnios, refinanciamento, compras imensas e vidas de super-luxo. Um mundo que se auto-alimenta fazendo disparar o preço dos bens onde metem o seu dinheiro: ações, criptomoedas, casas e até no passe do Neymar.

A resposta mundial à pandemia foi este sistema em esteróides, despejando imenso dinheiro na economia. Os trabalhadores estavam no desemprego, em lay off, com cortes salariais ou com Estado a assegurar salários de privados. A dinâmica económica tratou de fazer o trickle up. Foi em 2020 que houve o maior salto na riqueza dos super-ricos desde que há registo. E com tanto dinheiro, há que o "depositar"...

Os trabalhadores não precisam de taxa de juro baixa, precisam de habitação

No capitalismo quem se lixa é sempre o mexilhão. A discussão sobre as taxas de juro mostra a insuficiência de respostas no capitalismo. No atual contexto, a subida de taxas de juro é altamente penalizadora para a classe trabalhadora que foi empurrada para o crédito à habitação. Mas voltar ao tempo das taxas de juro negativas é garantir i) que só por isso o valor das casas permaneça alto; ii) que o capitalismo dos super-ricos continue a florescer e que estes continuem a "depositar" o seu dinheiro em casas contribuindo decisivamente para o aumento do preço. Limitar os parâmetros do debate a essa realidade é errado, é jogar apenas nas escolhas permitidas pelo capital.

A esquerda tem certamente que responder no momento à vida concreta dos trabalhadores ameaçados pela subida da sua prestação da casa. Mas tem que ir mais longe no debate e nas propostas. As fronteiras do capitalismo são as escolhas limitadas ao mau ou ao péssimo para os trabalhadores, como é a discussão sobre taxas de juro. Não é esse o mundo que nos propomos a construir. Há que ser claro: o direito à habitação deve ser suprido por políticas públicas e não por colocar os trabalhadores nas garras do crédito bancário.

Portugal é uma excepção na Europa. Apenas 2% das casas em Portugal são do Estado, quando na Europa há cidades nos 50%. É por isso que é preciso deixar claro que a subida do preço das casas é negativo para todos os trabalhadores, sejam eles proprietários de casa própria ou não. Isto porque para si a casa tem um valor de uso e não podem prescindir dela. Se a venderam, precisam comprar ou alugar outra, novamente a preço proibitivo. Já os seus filhos terão enorme dificuldade em sair para a sua casa, para constituir família e para ter poupanças.

Os únicos que beneficiam com a subida do preço de casas é quem detém muitas casas. Neste momento a direita diz que são os reformados que colocaram as suas poupanças do trabalho numa ou duas casas. Não. São os super-ricos e os fundos imobiliários que detêm milhões e milhões de casas. No mundo dos super-ricos, tudo é super.

O ministro que só está a ver a festa

A subida das taxas de juro já fez descer o preço das casas nalguns países. Em Portugal não. Porquê? Porque o preço das casas subiu por causa dos super-ricos e de pessoas com rendimentos muito superiores à média e o governo português decidiu que esse era um objetivo a perseguir. É por isso que o preço não aumentou só numa cidade ou num país, é um mercado global. Sim, o governo português teria dificuldade em travar a subida do preço, mas decidiu que afinal esse era o seu modelo e que o deveria intensificar.

Sobre os preços, o ministro da habitação Pedro Nuno Santos explica que "infelizmente Portugal tem uma grande procura do sector premium". Não deixa ser curioso que o ministro declare que está só a ver a festa. É um ministro que diz que está apenas no lugar do passageiro quando tem as mãos ao volante. É o governo do PS que tem um conjunto de políticas ativas para atrair e premiar essa procura premium, dando benefícios a fundos imobiliários, vistos gold a oligarcas, e benesses a nómadas digitais do ecossistema dos super-ricos. E o ministro diz que esse é o problema da habitação como se não fosse membro do governo e como se não pudesse fazer nada.

Os super-ricos estão a mais

Os super-ricos não são profissionais liberais que têm um Mercedes ou um Tesla. Os super-ricos são indivíduos com mais riqueza que a soma de muitos países.

Num mundo com tantos super-ricos, o seu dinheiro precisa ser "depositado" e Thomas Shelby sabia a resposta. Acontece que Thomas Shelby quis usar a sua fortuna para derrotar a ascensão do fascismo no Reino Unido. Não parece ser essa a história dos atuais super-ricos. E sim, o mundo não precisa de super-ricos.

À esquerda cabe garantir o direito à habitação e políticas de igualdade. E precisa desmistificar muito do debate dominante. Os impostos são um instrumento essencial de igualdade mas quem essencialmente os paga são os trabalhadores. É preciso inverter essa política e deve ser o capital e a super-riqueza a pagar.

Sobre o/a autor(a)

Biólogo. Dirigente do Bloco de Esquerda
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