Pretendem chegar gloriosos como cavaleiros andantes.
Na bancada central do PSD e em alguns camarotes do PS soam as trombetas da anunciação. Vêm aí ajudar-nos. Se alguém levanta as sobrancelhas e pergunta, que raio de ajuda é essa, ficam todos enxofrados.
O PS socratizado, centralizado e medroso, tenta adiar a vinda. Sabe que essa vinda lhe será fatal. Não é propriamente pela não concordância com as medidas que serão tomadas. É só por aquele especial carinho que tem pelo poder. É só por aquela empatia, por aquela paixão, por aquele arrebatamento enlevado que o mando sempre provoca nestes partidos a que pertence esta específica massa de habitantes predestinados a capitanear a barca portuguesa.
A ajuda salvadora aparece com voz de batina. Uma batina equívoca porque não se sabe se é a do estudante que ensaia experiências perigosas, ou a do padre inquisidor que não esqueceu, e pelo contrário, reaprendeu a tortura.
É possível que depois alguns gritos rebentem nas tardes manifestantes. É pouco.
Não se combatem infecções com aspirinas. Esta febre penosa com que nos empestaram não cede só com aspirinas. Isto é uma doença ruim.
O capitalismo endoidado e mau com a sua tonelagem de paquiderme entrou-nos decididamente vida adentro com a acrimónia grosseira que se lhe conhece.
FMI, BCE, CE – uma troika de turistas. No preciso momento em que puserem o pé bem calçado neste ocidente atlântico, neste Portugal empobrecido, hão-de dar-se abraços e dizer-se amabilidades. Hão-de passear-se depois por entre as contas do estado. E, claro, a seguir, hão-de ser dadas indicações aos moços. Estes estão mortinhos por pegar ao trabalho. A ambiência circundante é de festa. Os recém chegados há muito que ambicionavam uma visita a Portugal. Já andaram pela Grécia, pela Irlanda e por muitos outros países.
Se o trio diz mata, eles dirão esfola.
Na Idade Média a Igreja considerava que só com dor se atingiria o céu. Entre cilícios, penitências, auto flagelações múltiplas e outras crueldades, o clero propunha a salvação através do sofrimento quotidiano. Quanto mais padecimentos, tristezas e tragédias percorressem a vida dos povos, mais certinho estaria o paraíso.
Os novos membros do clero da Finança e respectivos acólitos governamentais dizem-nos, hoje, exactamente o mesmo. Até utilizam as mesmas palavras. Sacrifícios, privações, contenções.
Os poderes votados e instituídos, e a votar e a instituir, são de carácter débil e vacilam logo que os novos donos do mundo lhes abrem os olhos. São temerosos, aduladores, venais, tentando sempre, apesar de tudo, salvar algumas clientelas, alguns fregueses que lhes dão jeito manter, para que tudo se mantenha.
Esta é a nossa democracia. Uma democracia macilenta.
A democracia – a casa inacabada. Falta-lhe chão e falta-lhe abrigo. Os construtores civis desta casa desabrigada querem uma democracia de sobras. As sobras de todos os festins.
Uma democracia sem carácter. Aplaude medíocres. Ensurdece-se voluntariamente. Prescinde dela própria sem qualquer laivo de auto-estima. Medrosa, escuta o som da pantominice como se fosse a salvação. Negligente, não cuida de si. Veste o fato do estado de direito comprado numa feira, e julga que está bonita como uma parola. Não cuida nem do corte, nem do tecido que urde o fato deficiente, incompleto, de tão má qualidade que até uma criança ingénua o identifica como esburacado.
Esmaltados de incúria prosseguimos no desleixo da vida.
O FMI, o BCE e a CE têm as mãos sedosas do Jack o Estripador. Mãos hábeis, poderosas, flexíveis. Sedosas. Deslizam nos pescoços dos países à procura do sítio exacto do estrangulamento.
Trazem todos nos olhos a lascívia do privado e da privação.
Jogam ao monopólio com países inteiros.
Estas criaturas que nos governam e aquelas que aguardam a governação, têm a aparência de empregados de mesa que sugerem os pratos do dia, declinam receitas e até se mostram disponíveis para provar veneno, se assim os mandarem.
Se estes pelotões de tecnocratas rufias que, ao que parece, mais dia, menos dia, vão entrar aqui, os mandarem ir fazer surf para Beja, de imediato pegam nas pranchas. Bóra, lá.
Matreiros, os banqueiros, refinam lucros, músicas e procedimentos. Sentem-se bem.
Aumentam taxas, spreads, comissões e outras aldrabices, que constituem uma espécie de heroína financeira. São os snipers da nossa vida. Alvejam a torto e a direito, sem critério nem compaixão. Integram de facto e de direito as hordas dos hooligans da economia.
A resposta portuguesa tem sido até hoje edificada na disciplina da manifestação, na ordem de uma greve organizada, na retórica dos discursos que tentam denunciar a infelicidade que nos impõem. Ímpetos, repentes, rompantes, são até agora desconhecidos. Mas não abusem, que a vossa sorte não dura sempre.
Sabe-se lá o que pode vir por aí.
