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A Sexta-feira é nossa!
Jovens de vários países têm assumido a luta das sextas-feiras pelo futuro, a greve climática estudantil. Estão conscientes de que a sociedade precisa de operar grandes mudanças para haver um futuro digno para a maioria das pessoas. E assumem nas suas mãos o dever de se manifestar pela mudança. É certo que, com a pandemia global e com uma guerra na Europa, essas lutas perderam ritmo. Mas as sextas-feiras pelo futuro podem ser reinventadas. Como afirmei no artigo anterior, é hora de reivindicar a sexta-feira não só como bandeira da luta contra a crise do clima, mas também como ferramenta de luta contra a crise do trabalho.
Há várias décadas o desenvolvimento tecnológico tem sido orientado para a concentração de riqueza em poucas mãos, para o aumento das desigualdades sociais e internacionais, e para uma economia destruidora do ambiente. Produtos desse desastre, as crises financeiras e económicas, o desemprego e a precariedade, a emergência climática e as crises pandémicas exigem mudanças profundas na produção e na organização social. Essa reorganização da economia e da sociedade, em defesa dos interesses da humanidade trabalhadora, depende, entre outras coisas, da redução do horário de trabalho.
A longa luta pela redução da jornada de trabalho
A jornada de 8 horas de trabalho foi uma bandeira levantada há 200 anos. No início do século XIX, o socialista utópico Robert Owen formulou o objetivo de uma repartição do dia com: oito horas de trabalho, oito horas de lazer e oito horas de descanso. Foram longas as lutas do movimento dos trabalhadores. Em O Capital, no capítulo 6 do livro 1, Karl Marx afirma que antes da lei fabril de 1833 nem era possível definir com exatidão a extensão de um dia “normal” de trabalho na indústria. A redução do horário de trabalho infantil e, principalmente, a redução do horário de trabalho das mulheres foram a porta de entrada para a legislação que limita a exploração laboral em geral. De tal forma que, perante a Associação Internacional dos Trabalhadores (conhecida como Primeira Internacional, 1864-1876), Marx declarou em 1864 que a luta pela limitação legal das horas de trabalho representava o combate “entre o domínio cego das leis de oferta e procura”, em que se baseia a economia burguesa, e “uma produção social submetida a um controle social previdente que forma a economia política da classe trabalhadora”. Afirmando taxativamente que a lei das 10 horas “não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que em plena luz do dia a economia política da classe média sucumbiu ignominiosamente, ridiculamente, diante da economia política da classe trabalhadora".
Foi graças a uma intensa luta de década e meia que o movimento operário do Reino Unido conseguiu que a lei das 10 horas entrasse em vigor no dia 1° de maio de 1848. Em 1866 a Associação Internacional dos Trabalhadores inscreve no seu programa a jornada das 8 horas, reivindicação que se estava a afirmar no movimento operário da época. Sob a bandeira das 8 horas, ficaram célebres alguns momentos de luta, como a greve geral do 1º de maio de 1886 nos EUA e a subsequente revolta de Chicago. Em julho de 1889, no seu congresso fundador, em Paris, a Internacional Operária (conhecida como Segunda Internacional, 1889–1916) decide fazer do 1º de maio de cada ano uma jornada de luta pelas 8 horas.
Em vários países, as conquistas continuaram a fazer-se setorialmente e a ser alargadas por contágio de lutas. No caso de Portugal, a 23 de março de 1891 foram estabelecidas legalmente as 8 horas para os manipuladores de tabacos. E, já como a República, as leis números 295 e 296, de 22 de janeiro de 1915, também estabeleceram setorialmente reduções do horário de trabalho. A nível internacional, a jornada das 8 horas foi consagrada, nomeadamente, pela Lei N° 5350 da República Oriental do Uruguai (1915), pela Constituição mexicana (1917), pela Revolução Russa de 1917, pelo acordo Stinnes-Legien entre trabalhadores e patrões, que temiam uma revolução alemã (1918), e pela lei francesa de 23 abril de 1919. Neste último caso, o governo fez também do 1º de maio de 1919 um dia de folga, procurando evitar com estas decisões uma possível greve geral. Na sequência da guerra mundial de 1914-18 e do tratado de Versalhes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituída então pela Sociedade das Nações e hoje organização especializada das Nações Unidas, vai promover a consagração das 8 horas por dia e 48 horas por semana em leis gerais, códigos do trabalho e constituições de vários outros países.
É também dessa leva de 1919, na sequência de uma onda de greves organizadas pela central sindical União Operária Nacional, a lei das 8 horas por dia e 48 horas por semana em Portugal: Decreto 5516, de 7 de maio de 1919, inserindo o horário de trabalho dos trabalhadores e empregados do comércio e indústria no continente da República e ilhas adjacentes. O sábado ainda era então um dia de trabalho e ficavam de fora os trabalhadores rurais e domésticos, entre os quais os empregados de hotel. Por esta via setorial, ficavam de fora muitas mulheres, uma desigualdade que acresce ao trabalho familiar sem qualquer limite horário. De fora desta lei ficavam também os territórios colonizados e, em particular, as populações sujeitas ao regime do indigenato e a formas de trabalho forçado. No que toca às leis do indigenato, estas só caíram em 1961, já no contexto do avanço das lutas pela independência dos povos das colónias. Quanto aos trabalhadores rurais portugueses, estes só conquistam as 8 horas, após décadas de luta, travada principalmente no Alentejo e Ribatejo, em 1962. Essa conquista, no entanto, não se tornou efetiva em todo o país, em muitas aldeias do norte do país, nomeadamente na região do Douro, as 8 horas para os trabalhadores rurais só se tornaram uma realidade muito depois do 25 de abril de 1974, em finais dos anos 1970.
Como vemos, tem sido longa a luta pela redução do horário de trabalho, pelos dias de descanso semanal, pelas férias pagas, pela idade da reforma. A Convenção da Semana das 40 horas foi organizada pela OIT em 1935, mas só em 1962 é que a mesma organização internacional emitiu uma recomendação no sentido dessa redução do tempo de trabalho sem perda de salário. Em Portugal, o Decreto-Lei 409/71 de 24 de Agosto manteve a semana das 48 horas de trabalho, deixando de fora os contratos de trabalho de serviço doméstico e remetendo para regime especial o trabalho a bordo e o trabalho prestado para instituições de previdência social. Depois da revolução do 25 de abril de 1974, foram conquistadas reduções da semana de trabalho através da contratação coletiva, ou seja, através de acordos setoriais e de acordos de empresa. Abrindo-se, desta forma, caminho para reivindicações gerais de mais um dia de descanso e menos horas de trabalho.
O objetivo das 40 horas semanais, com sábado e domingo de descanso, foi avançado pela central sindical CGTP-IN no 1º de maio de 1986. Mas foram precisos mais de dez anos de combate do movimento dos trabalhadores e das trabalhadoras para que as 40 horas por semana fossem finalmente consagradas pela Lei 21/96, de 23 de Julho. E, mesmo assim, a sua implementação prática ainda custou mais uns anos de luta. As 40 horas estão atualmente consagradas no Código do Trabalho, sendo as 35 horas do setor público usadas pelo movimento sindical como base para uma justa reivindicação da generalização deste padrão semanal. Em França, a redução das 39 horas para as 35 foi estabelecida no ano 2000 e a nível internacional está na ordem do dia a discussão da semana dos 4 dias e da semana das 32 horas.
A reivindicação da sexta-feira pelo futuro
Esta é uma batalha histórica por uma visão do mundo que rompe com a submissão do trabalho ao lucro infinito dos detentores de capital. Por uma visão do mundo que coloca a produção ao serviço da humanidade e que respeita a natureza da qual a humanidade também forma parte.
Reivindicar a sexta-feira é um passo importante! A semana com três dias livres e encurtar a jornada de trabalho sem perda de rendimentos exigirá, como sempre, luta social. Pode não ser uma conquista imediata, mas é uma perspetiva de futuro
As conquistas de redução do tempo de trabalho, contando sempre com avanços e recuos, variam muito entre países, entre continentes e entre setores de trabalho. Mas a causa é comum às trabalhadoras e aos trabalhadores de todos os países, e uma ferramenta de longo alcance. Uma maior repartição do tempo de trabalho é uma arma contra o desemprego. A precariedade no trabalho e na vida afeta principalmente os povos subalternizados, os grupos racializados, as sexualidades e os géneros oprimidos. Contra a exploração e a opressão, precisamos de orientar a economia para as necessidades humanas e não para o lucro de uma minoria de donos. A bandeira da redução do horário de trabalho fortalece os vários sujeitos políticos em luta pela justiça social e ecológica.
A nível global, precisamos de produzir menos e melhores produtos industriais e de reorganizar a produção agroalimentar e a divisão internacional do trabalho. Abrindo espaço para reforçar serviços úteis às necessidades humanas. E reduzindo a pegada ecológica e social da integração desigual das economias. Compensando, por essas vias, todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores em recuperação de tempo livre, distribuição de riqueza e condições de trabalho. Tal reorganização do tempo de trabalho deverá ter prioridade e particular atenção a quem exerce trabalho por turnos e outros trabalhos mais penosos.
Desde a crise de sobreprodução de 1929 que se aperfeiçoam tecnologias produtoras de lixo, isto é, de mercadorias de durabilidade reduzida. O encurtamento da vida útil e alto custo ou impossibilidade de reparação de várias máquinas, ou excesso de embalagens por razões de marketing, são luxos e lixos que a humanidade não pode tolerar.
É necessário produzir melhor, produtos de qualidade, menos poluentes, mais duradouros e com menor pegada ecológica. Produzir menos lixo implica reduzir a aplicação de força de trabalho, libertando mais gente para outras funções sociais e mais tempo para o lazer. Por um lado, a economia pode crescer noutra direção, direcionando o trabalho para outras tarefas socialmente úteis e não poluentes - de que é exemplo a necessária socialização de tarefas de cuidado hoje muito dependentes do trabalho não pago que é imposto às mulheres. Por outro, a libertação da força de trabalho deve também ser convertida em aumento do tempo livre das trabalhadoras e dos trabalhadores. Todas e todos contribuímos com o nosso trabalho para a satisfação das necessidades humanas, todas e todos devemos poder desfrutar da liberdade fundada nesse trabalho comum.
O efeito desta transformação depende muito das várias lutas sociais. Por exemplo, o aumento do tempo livre amplia também um campo de disputa para a luta feminista por uma repartição mais justa das tarefas domésticas e familiares. A combinação da redução do número de dias com a redução do número de horas de trabalho por dia possibilitam também, conforme os setores, a existência de horários de trabalho desfasados e, portanto, uma redução do efeito hora-de-ponta que congestiona transportes públicos e gasta tempo de vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
Reivindicar a sexta-feira é um passo importante! A semana com três dias livres e encurtar a jornada de trabalho sem perda de rendimentos exigirá, como sempre, luta social. Pode não ser uma conquista imediata, mas é uma perspetiva de futuro. No caminho, pode haver adaptações resultantes de negociação coletiva, atendendo quer um período transição, quer a especificidades setoriais, quer, ainda, ao grau de penosidade e de especialização de determinadas profissões. Apontada a bandeira da redução da jornada de trabalho como um rumo para o futuro, não podemos ficar na expectativa e sabemos que as palavras de ordem e os objetivos imediatos podem variar conforme os setores de atividade, os países e os continentes. Trabalharemos para concretizar e divulgar reivindicações de redução da jornada de trabalho, para fazer movimento à escala nacional e internacional.
A humanidade trabalhadora tem um mundo a ganhar!
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