Os títulos do século XVIII são incríveis: A Vida e as Estranhas Aventuras Surpreendentes de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro: que viveu vinte e oito anos sozinho numa ilha desabitada na costa da América, perto da foz do Grande Rio de Oroonoque; Tendo sido lançado em terra por naufrágio, onde todos os homens pereceram, exceto ele. Com um relato de como foi finalmente tão estranhamente libertado por piratas.
A obra do autor inglês Daniel Defoe foi publicada originalmente em 1719 e há quem diga que teve como inspiração o livro O filósofo autodidata do pensador andaluz Ibn Tufail (publicado no século XII e traduzido para latim - Philosophus autodidactus - e inglês no final do século XVII). Certo é que a produção cultural ocidental fez centenas de versões de Robinson Crusoe. Foi um sucesso de impressões, reimpressões, traduções e reinterpretações não só na sua época mas ao longo dos mais de trezentos anos que entretanto passaram. As versões que li na escola são do século XX, ambas do autor francês Michel Tournier: Sexta feira ou os limbos do pacífico e a sua versão infantil, com o sugestivo título Sexta-feira ou a vida selvagem.
Sempre me fez confusão a forma ligeira com que Robinson se sente no direito de chamar Sexta-feira ao indígena que salva de ser morto. Encontrou-o na sexta-feira e deu-lhe esse nome. Aproveitou também para se proclamar governador da ilha, agora que havia dois habitantes. Como obra literária tem muito interesse. Como espírito de uma era tem mais ainda.
O pretexto da aventura é sedutor e os seus pressupostos sopram na direção da mentalidade emergente aquando da sua primeira publicação. Um homem acidentalmente vê-se sozinho numa ilha e cria um conjunto de regras consideradas de ‘civilização’. Há uma dualidade ‘civilização’ versus ‘vida selvagem’. Ao mesmo tempo há um naturalismo do modo de vida do homem branco. Tudo isto, claro está, carregado de orientalismo - que é o outro nome do imperialismo simbólico.
A ideia de começar de novo numa terra de ninguém é a aventura da burguesia europeia emergente. A terra de ninguém, porque os locais são desconsiderados, é o possível mundo novo. Nela, os homens - sim, os homens, não é toda a gente... Nela os homens brancos estão livres das tradições do velho mundo. Estão livres para se reencontrarem com o direito natural. A mentalidade burguesa concebe o seu modo de vida como um modo de vida natural. No princípio era um homem, pode chamar-se Robinson, e a soma desse indivíduo com os outros indivíduos gera a família 'natural', a empresa 'natural', o governo 'natural'.
Marx chamava robinsonadas à antropologia ingénua que estava na base do pensamento político-jurídico e económico da burguesia ocidental. O burguês olha para o passado e vê os Flintstones. O burguês olha para o futuro e vê os Jetsons. Não por acaso o livro 1 de O Capital termina com um capítulo sobre os países coloniais. A leitora e o leitor do século XXI tenderão a intuir que se trata de um capítulo sobre territórios sob o domínio das potências europeias. Mas no contexto refere-se simplesmente aos territórios da América do Norte dominados por populações de origem europeia, sendo irrelevante que o Canadá tivesse à época (como agora) uma rainha no velho mundo e que a independência dos EUA tivesse sido proclamada quando A Vida e as Estranhas Aventuras Surpreendentes de Robinson Crusoé... tinham apenas 57 anos de publicação.
Os países coloniais são territórios ocupados, um novo mundo onde a terra considerada de ninguém é apropriada pelas populações colonizadoras. Descreve Marx que os burgueses esbarram com um problema nesse novo mundo. Exportam para a América do Norte: dinheiro, máquinas e trabalhadores. Mas chegam lá e as leis 'naturais' da economia não funcionam. Só há capitalismo e burguesia se houver proletários. Durante séculos, decorreu na Europa um processo violento de expropriação de camponeses que estiveram largo tempo sem encontrar lugar nessas economias em transformação. No entanto, esses proletários, quando chegavam da Europa à América do Norte, preferiam fugir da fábrica logo que possível e apropriar-se da terra 'gratuita'. Isto é, da terra que é gratuita a expensas do domínio dos colonizados. Os proletários deixam de o ser, tornam-se proprietários de alguns meios de produção, fazem a sua quinta e a sua vida. Já não são compelidos a vender a sua força de trabalho. E o capitalista industrial tem de continuar a importar mão de obra através da imigração e criar todos os artifícios para conformar a estrutura social aos seus interesses. Toda a história da economia burguesa é cheia destas peripécias, sempre a forçar e a reforçar as desigualdades sociais que tornam o capitalismo possível.
Crises, guerras, destruição ambiental são as sequelas de uma história requentada, que já não são as Aventuras de Robinson Crusoé, mas as desventuras de um modo de vida (e de um modo de produção) no interesse de uns poucos que destrói as condições de vida da maioria, de todas as pessoas e do planeta. Projetar um novo mundo, sem ilhas ou continentes que nos sejam desconhecidos, é o desafio à imaginação. Um desafio grande para quem precisa de protagonizar o florescimento de uma nova era, de abrir um novo capítulo na história da humanidade. Partimos do ponto que não há planeta B, que é aqui e agora que a emergência climática e a crise social têm de encontrar resposta. As trabalhadoras, os trabalhadores e todos os grupos explorados e oprimidos só avançam com o seu próprio pensamento, livres da naturalização da sociedade burguesa.
Jovens de vários países apontaram algum caminho com a luta das sextas-feiras pelo futuro, a greve climática estudantil. Estão conscientes de que a sociedade precisa de operar grandes mudanças para haver um futuro digno para a maioria das pessoas. E assumiram nas suas mãos o dever de se manifestar pela mudança. Com a pandemia global e com uma guerra na Europa, essas lutas perderam ritmo. Mas as sextas-feiras pelo futuro podem ser reinventadas. Parte das e dos grevistas climáticos estudantis confrontam-se hoje também com a crise do trabalho e com as várias crises sociais. Enquanto alguns setores da burguesia aceitam ensaiar nos seus próprios termos a semana dos quatro dias em alguns setores, o campo de quem trabalha e luta por um mundo novo deve fazer a sua própria história e reivindicar a sexta-feira como recuo da exploração do trabalho e como ferramenta de transformação socioecológica. A sexta-feira é nossa!