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Porque votámos a favor da declaração do estado de emergência

Não dispensaremos nenhuma das responsabilidades constitucionais na fiscalização da sua aplicação e da ação do Governo nesta crise. Nos momentos difíceis, a democracia tem de estar à altura das exigências.

Estamos todos com os olhos postos em Itália e queremos evitar esse cenário de terror. A nossa vida vai mudar, o país vai ter de se organizar de outra maneira. Muitas regras pelas quais nos regemos deixaram de fazer sentido. Agora é preciso mobilizar todos os recursos, públicos e privados, para proteger o SNS, porque é ele que nos vai salvar da crise epidemiológica; para proteger o emprego e salvaguardar os rendimentos dos trabalhadores, porque serão eles os primeiros a ser afetados pela crise económica; para garantir direitos e proteger as pessoas, porque tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias. O Bloco apresentou ontem um pacote de medidas para suspender despedimentos, assegurar moratórias sobre despejos, cortes de luz e água, prolongar e alargar apoios sociais, autorizar requisições a privados para a área da saúde.

Ontem foi votada também a declaração de estado de emergência proposta pelo Presidente da República. A declaração do estado de emergência é, por definição, uma suspensão do exercício de direitos. É por isso que todos os democratas a receiam, porque temos memória e sabemos que o prolongamento de estados de exceção degenera a democracia e favorece o crescimento de respostas autoritárias. Há escolhas políticas na reação a uma crise desta dimensão, não podem estar acima do escrutínio democrático. É também por essa razão que rejeito o encerramento do Parlamento, embora esteja de acordo com a alteração do seu funcionamento. A última coisa que a democracia pode fazer perante uma crise é desertar.

É legítima a questão sobre se, neste momento, a declaração do estado de emergência seria indispensável para combater a pandemia de covid-19. Segundo a Constituição, o estado de emergência pode ser declarado, “nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”. Mas nenhum destes motivos pode ser invocado ao sabor de uma perceção – a declaração tem de ser “adequadamente fundamentada” e conter “a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso”.

Ao declarar o estado de emergência, o Presidente da República tem de ser muito claro sobre os direitos que pretende suspender e porquê. Numa circunstância em que se tenta impedir o contágio de um vírus através do isolamento social da população, poderá ser aceitável a suspensão da liberdade de circulação ou de entrada e saída do país, mas jamais se poderia limitar a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de associação ou os direitos, liberdades e garantias de participação política dos cidadãos.

Normalmente, o estado de emergência serviria para autorizar o Governo a recorrer às forças de segurança para manter as pessoas em casa, determinar o encerramento de atividades económicas ou fechar fronteiras. Mas a verdade é o país já fez tudo isso com uma enorme compreensão, solidariedade e sentido de responsabilidade. Noutros países, até porventura mais afetados do que o nosso, foi preciso obrigar as pessoas a fazer aquilo que em Portugal está a ser feito voluntariamente. Estou orgulhosa do meu país.

Apesar da esperança ingénua com que muitas pessoas o esperam, o estado de emergência não é a panaceia para o vírus que todos tememos. Perante a imprevisibilidade do que está por vir, a sua declaração pode dar ao Governo a latitude suficiente para tomar medidas mais exigentes de forma rápida, se isso se justificar. É isso que significa aprovar o estado de emergência: dar poder ao Governo para decidir, a cada momento, as medidas adequadas e necessárias para constitucionalmente preservar a saúde pública, e nada mais do que isso.

O estado de emergência é uma medida temporária que não pode transformar-se em regime permanente. Salvaguardado o princípio da prevenção, as medidas tomadas pelo Governo têm de ser proporcionais e graduais. O Governo demonstrou ter essa sensibilidade, respeito pelo caráter excecional e transitório desta decisão e preocupação pela manutenção da normalidade democrática; assim terá de continuar. O pior pode estar ainda por vir e é importante evitar o cansaço generalizado e a desmotivação em relação a medidas que agora são tão esperadas mas, daqui a pouco, podem parecer um pesadelo.

Mas é também preciso evitar acrescentar crises às crises. Há uma exigência de solidariedade institucional entre órgãos de soberania que tem de ser ponderada. Em matérias essenciais e tempos excecionais não há nins, as posições têm de ser claras. O país não compreenderia uma interrupção no combate ao vírus para debater a oportunidade da decisão do Presidente da República.

Foi por estas razões, e com estas garantias, que votámos a favor da declaração do estado de emergência. E não dispensaremos nenhuma das responsabilidades constitucionais na fiscalização da sua aplicação e da ação do Governo nesta crise. Nos momentos difíceis, a democracia tem de estar à altura das exigências.

Por último, devemos aos profissionais de saúde, de segurança, da distribuição, do setor produtivo e dos serviços públicos essenciais o nosso agradecimento coletivo. É justo que esse agradecimento se traduza em apoios materiais, salário e direitos para aqueles que se sacrificam por todos nós.

Artigo publicado no jornal “I” a 19 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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