Saiu no Público um artigo assinado por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), sobre a ligeira descida das taxas de juro aprovada esta semana. É um artigo que merece atenção, tanto pelo que afirma sobre a política monetária como (e sobretudo) pelo que omite.
A presidente do BCE começa por reconhecer que a subida da taxa de inflação não se deveu a um excesso de procura mas sim a um choque de oferta, devido aos constrangimentos nas cadeias de distribuição internacionais após a pandemia e a invasão russa da Ucrânia. Ainda assim, o BCE atuou no sentido de restringir a procura. Lagarde argumenta que isso era inevitável para evitar que os trabalhadores passassem a exigir aumentos mais elevados por esperarem níveis de inflação mais altos no futuro, gerando uma espiral inflacionista. Embora admita que a subida dos juros "criou dificuldades para algumas pessoas e empresas", ao fazer aumentar o custo dos empréstimos ou do crédito à habitação, Lagarde defende que a atuação do banco central assegurou a descida da taxa de inflação. É aqui que os problemas começam.
Por um lado, os dados sugerem que a descida da taxa de inflação se deveu essencialmente à redução dos preços da energia e à mitigação dos constrangimentos da oferta. É difícil perceber o papel que o BCE teve nestes desenvolvimentos, tendo em conta que até a própria presidente do banco central reconheceu várias vezes que "aumentar as taxas de juro não baixa os preços da energia", sobretudo quando esta é importada.

Inflação anual na zona euro, dezembro 2023
Por outro lado, a política monetária não parece ter tido o impacto desejado na compressão da atividade económica e do emprego. Apesar de se ter argumentado q o desemprego teria de aumentar para reduzir as pressões inflacionistas, a taxa de inflação diminuiu ao longo de 2023 e no início de 2024 sem que isso ocorresse na Zona Euro, como se vê no gráfico abaixo.

Taxas de desemprego UE e EUA janeiro 2011/abril 2024
Existe o argumento de que a subida dos juros serviu para evitar expectativas de inflação mais elevada no futuro, contribuindo para evitar que os trabalhadores passassem a exigir maiores aumentos salariais e que as empresas aumentassem os seus preços em resposta. No entanto, os resultados de um inquérito recente realizado nos EUA mostram que a maioria das pessoas acredita que uma subida dos juros... agrava a inflação. Ou seja, a maioria das pessoas pensa exatamente o contrário do que os bancos centrais assumem, pelo que a sua tentativa de gerir expectativas poderia ter o resultado contrário. A verdade é que existem bons motivos para crer que as expectativas desempenham um papel muito menos relevante do que a teoria económica convencional assume.
Existe ainda o argumento de que não sabemos o que teria acontecido na Zona Euro sem a subida das taxas de juro. Só que, no Japão, a taxa de inflação teve uma evolução semelhante à das economias ocidentais (subida em 2022 e descida desde 2023) sem que o banco central tivesse aumentado as taxas de juro, o que indica que os motivos para a redução das pressões inflacionistas foram outros.
O que a inflação dos últimos três anos nos mostra é que todas as decisões que os bancos centrais tomam são discutíveis, desde os pressupostos em que assentam aos objetivos que prosseguem e à melhor forma de os alcançar são alvo de debate. A política monetária é política. Mas quando os bancos centrais são independentes do poder político, como é o caso do BCE, o debate democrático é afastado. A quem serve essa independência?
Artigo publicado em Ladrões de Bicicletas
