A política do abate

porHugo Evangelista

27 de julho 2020 - 23:11
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O abate de animais errantes não funciona porque nunca funcionou. Insistimos? E diminui o valor que damos à vida de um animal. É isso que queremos?

Recentemente a Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (Anvetem) defendeu o regresso do abate de animais saudáveis1 em centros de recolha oficiais (CRO) quando não são adotados ao fim de 12 ou 18 meses.

Esta proposta surge como resposta aos trágicos acontecimentos em Santo Tirso2.

Resumindo: 1) há muitos animais a chegarem aos canis; 2) nem metade são adotados e é preciso fazer alguma coisa aos restantes; 3) a sobrelotação leva os animais a serem abandonados na rua e ao surgimento de canis ilegais; 4) pelo que a conclusão é que se deve matar animais saudáveis que estão em excesso, para que outros não acabem em canis ilegais.

Ao mesmo tempo que o propõem, reconhecem que o abate não é solução.

E realmente não é solução. Por isso não faz sentido a proposta. Durante décadas, a captura e abate de animais foi a estratégia escolhida em Portugal para reduzir o número de animais abandonados nos CRO e isso deixou-nos sempre no mesmo sítio, com milhares de mortes a lamentar e que podiam ser evitáveis.

Sejamos claros. Para falarmos do fim da sobrelotação e do abate temos que falar de tudo o que vem antes. Não chega empurrar a responsabilidade para as Câmaras Municipais e respectivos médicos veterinários.

É importante reconhecer e atuar na raiz do problema, nas causas do abandono, e não gastar tempo e recursos com a eliminação temporária das consequências.

O problema

O abandono de animais faz parte de um ciclo. Em primeiro lugar estão os criadores de animais, uns ilegais e outros legais, que ganham dinheiro com a venda de animais, normalmente sem preocupações sobre a responsabilidade do dono.

Em paralelo, há donos de animais que não podem ou não querem esterilizar os seus animais e que depois dão, vendem ou matam as ninhadas que vão nascendo.

Facilitado pela compra “a quente”, a perda de interesse pelo animal leva ao abandono.

O espaço nos CRO não é infinito, as adopções são insuficientes, o problema foge do controlo e a sobrelotação acontece.

Sem outras soluções por perto, a “eutanásia” parece a saída mais rápida para resolver o excesso de animais. Mas o abate não toca em nenhuma das causas e por isso o problema mantêm-se e a morte de animais saudáveis ou recuperáveis torna-se recorrente.

Abater ou não abater, eis a questão: o valor da vida animal

O primeiro passo de qualquer solução deve ser uma reflexão sobre os valores éticos que estão em causa. Como é que nós como sociedade, queremos olhar para os animais?

Todos os animais sencientes, incluindo a espécie humana, têm grandes diferenças entre si mas partilham algo essencial - o interesse em viver sem sofrimento.

Não sendo um exclusivo dos animais de companhia, também estes têm a sua vida subordinada aos interesses económicos de quem os comercializa. A venda irresponsável de animais para companhia desvaloriza e instrumentaliza estes animais, diminui o valor da sua existência. O abate por sobrelotação surge neste contexto. Instalada a ideia que o valor da vida destes cães e gatos é facilmente substituível e por isso perto de zero, então não há qualquer problema em abandoná-los ou abatê-los.

Valorizar estas vidas, que partilham connosco o interesse em viver sem sofrimento, é uma luta humanista. O exercício da desvalorização do indefeso e a mercantilização dos animais são degradantes para o próprio ser humano e para os seus interesses. Por isso, a luta pelo respeito destes animais não se isola de todas as outras lutas. Ela faz parte do combate a todas as opressões. E por isso todas e todos nós devemos tê-la como nossa.

Começar a casa pelo telhado

Para acabar com o abate de animais de companhia precisamos de olhar para todo o ciclo que nos levou a essa situação e chamar à responsabilidade os actores envolvidos, em que o funcionamento dos CRO são uma parte importante, mas onde não recai toda a culpa.

A responsabilidade começa no Governo, que tem de dar sinais claros sobre a necessidade de valorizar a vida dos animais e de terminar com o abate de animais de companhia recuperáveis nos CRO.

A partir daí o Governo tem de impedir a venda “a quente” de animais de companhia. Tem de fiscalizar os criadores legais e fechar todas as criações ilegais, não apenas quando maltratam os animais, como no caso recente do toureiro João Moura3.

Tem de fazer educação pública pela adopção responsável de um animal de estimação em detrimento da sua compra.

O Governo e as autarquias têm de simultaneamente iniciar campanhas massivas de esterilização de animais. Têm de tornar a esterilização obrigatória no momento da sua compra e adopção. A esterilização de animais de companhia é a maneira mais eficaz e compassiva de evitar a sobrepopulação e de salvar vidas.

Esta é uma questão de saúde pública e respeito pelos animais, por isso as receitas do estado podem e devem ser usadas também para isto.

O Governo claramente falhou neste papel. Com a Lei n.º 27/2016 colocou toda a pressão e responsabilidade deste problema nos CRO, atribuiu algum dinheiro que ainda por cima chegou tarde (só em 2018 e 2019), fez muito pouco para mudar o “mind-set” em todos os actores sociais e, sem surpresa, passados quatro anos tudo está na mesma.

A responsabilidade é em seguida das Câmaras Municipais e os médicos veterinários que têm de adoptar uma estratégia No-Kill, deixando de olhar para um CRO como um sítio onde se mantêm apenas vivos os animais adotáveis, mas passando a ser um espaço centrado no cuidado e respeito de toda a vida animal. Isto significa salvar todos os cães e gatos que chegam a um abrigo e que podem ser salvos. Significa recuperar todos os animais recuperáveis, sejam danos físicos ou comportamentais. Significa criar um ambiente positivo e saudável nos CRO, mais propenso à adopção. Significa dar formação a todos os seus funcionários nesta nova estratégia, de criar condições para haverem famílias de acolhimento temporário, aproveitar sinergias com grupos de voluntários, e garantir e fiscalizar a adopção responsável de animais esterilizados.

A partir daí, a palavra eutanásia começa a recuperar o seu significado e passa a ser um ato misericordioso, usado apenas quando o animal está a sofrer com uma condição irreparável. Deixa de ser um abate provocado pela falta de espaço.

A 30 de Setembro sairá o relatório final do recém criado “Grupo de Trabalho para o bem-estar animal” criado pelo Governo para definir uma estratégia nacional para os animais errantes. Esperemos que aponte sem receio para as falhas na atuação do Governo e que este saiba assumir as suas responsabilidades.


Notas:

Hugo Evangelista
Sobre o/a autor(a)

Hugo Evangelista

Biólogo.
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