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As pandemias vieram para ficar

As pandemias vieram para ficar e serão cada vez mais frequentes. Algumas serão mais limitadas no espaço e no tempo, outras serão catástrofes globais como a covid-19. Há solução? Claro que há.

Houve uma discreta onda de revolta perante as primeiras notícias que mostravam a reabertura dos mercados de animais vivos na China – o local onde o SARS-Cov2, o vírus da covid-19, terá transitado entre um mamífero e o primeiro ser humano. Em alguns casos, essa revolta era revestida de indignação racista. Só que não nos podemos esquecer que o problema não é só a China e não são só aqueles mercados. O problema é toda a indústria de produção animal e a agricultura intensiva global que criam as condições ideais para uma pandemia.

O problema é toda a indústria de produção animal e a agricultura intensiva global que criam as condições ideais para uma pandemia

As zoonoses são infeções que adquirimos através de animais vertebrados. Em alguns casos esse animal é um hospedeiro para um microorganismo vindo de um terceiro animal como o morcego ou a carraça. A OMS estima que todos os anos existem mil milhões de casos de doenças zoonóticas e que 60% das infeções emergentes são zoonoses. Nas últimas 3 décadas, 30 novos microorganismos que provocam doença em humanos foram identificados e 75% destes tiveram origem em animais.

Na nossa história não faltam exemplos de zoonoses que se tornaram problemas de saúde pública muito relevantes, como a peste negra. Mas não precisamos de ir tão longe. A infeção por VIH foi transmitida ao humano através do chimpanzé na floresta centro-africana. E esta transição ocorreu em 1906, provavelmente porque a carne de chimpanzé era uma iguaria na região dos Camarões. Mas foi na década de 60, com a migração forcada de milhões de trabalhadores para Kinshasa (Léopoldville na altura) e o desmatamento de extensa áreas para a construção de caminhos de ferro e exploração mineira que o vírus finalmente encontrou o seu caminho de expansão. O ébola é outra hipótese de zoonose que se supõe partir da caça de primatas naquela região.

O vírus da encefalite japonesa é um exemplo bem estudado de zoonoses em expansão pelo mundo. Propagado por um mosquito que se alimenta de animais domésticos, a encefalite japonesa espalhou-se, nas últimas décadas, por todo o sudoeste asiático, na sequência do aumento significativo da produção de arroz naquela região, ao qual está associada a transformação de extensas áreas de floresta em campos de monocultura, ideais para a reprodução do mosquito. Paralelamente, o aumento da pecuária suína amplificou o problema – o porco serve como hospedeiro para o vírus, no interior do qual ele se reproduz e cria milhares de milhões de cópias de si mesmo, sendo depois transmitido diretamente ao homem.

E já neste milénio tivemos uma pandemia, o H1N1, que terá matado cerca de 300.000 pessoas em todo o mundo e que sabemos hoje ter-se originado em industriais quintas de produção de carne suína no México. Quase 100 anos depois da descoberta da penicilina, enfrentamos hoje um grave problema de resistência aos antibióticos. Morre-se hoje nos melhores hospitais do mundo com infeções por bactérias banais que adquiriram resistência. E uma das causas dessa resistência é precisamente a produção animal em larga escala que coloca os animais “amontoados” aos milhares em espaços confinados e se administram antibióticos para evitar a disseminação de doenças.

Já em 2013, um estudo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences dos EUA concluía que são muitos os exemplos em que é possível relacionar a intensificação da atividade agrícola, a monocultura intensiva e a ocupação de terrenos selvagens para agricultura com o aumento das zoonoses. A invasão de terras selvagens por populações humanas cria zonas de transição e contacto entre diferentes ecossistemas, onde se misturam espécies que nunca se tinham encontrado. Esta mistura permite que agentes microbianos partilhem material genético, aumentem a sua diversidade genética, adaptem-se e desenvolvam maior nocividade quando entram em contacto com animais, entre os quais, nós.

A solução é a mudança dos nossos padrões de consumo de produtos animais, é o fim da agricultura intensiva, do comércio global de carne, é a reflorestação e a reversão das alterações climáticas

Focar todo o problema das pandemias recentes nos mercados de animais vivos na China é ignorar uma realidade tão perto de nós. Toda a indústria ligada à produção animal intensiva é um risco para o futuro. Tal como as práticas de agricultura intensiva que reclamam habitats naturais, aproximam as comunidades humanas de ecossistemas selvagens, criando um caldo genético óptimo para a transmissão de microorganismos entre animais e humanos. Portanto sim, as pandemias vieram para ficar e serão cada vez mais frequentes. Algumas serão mais limitadas no espaço e no tempo, outras serão catástrofes globais como a covid-19, com o afundamento de toda a economia. E nem sequer é possível prever quando será a próxima. Pode ser já para o ano.

Há solução? Claro que há. E não são vacinas ou antivíricos, porque esses chegam sempre depois da catástrofe acontecer. A solução, por mais difícil que seja imaginá-la, é a mudança dos nossos padrões de consumo de produtos animais, é o fim da agricultura intensiva, do comércio global de carne, é a reflorestação e a reversão das alterações climáticas. É todo um projeto político que implica uma outra economia para o mundo. Mas lamento dizê-lo, é a única solução existente. Ou é isso, ou teremos de nos habituar às pandemias periódicas. E às crises económicas e sociais que com elas vêm.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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