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A pandemia e a crítica do mercado

O melhor e o pior de nós vêm à superfície no combate à pandemia. A dedicação sem limites dos profissionais de saúde contrasta com a mesquinhez de uns quantos chico-espertos que passam à frente na fila da vacinação.

Mas essa chico-espertice não é só coisa de indivíduos, é coisa de países e de continentes. E não é só ratice, é mesmo o sistema de poder a funcionar. O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, denunciou-o: “dez países administraram mais de 75% de todas as vacinas contra a covid-19. Ao mesmo tempo, mais de 130 países não receberam uma única dose.” Esses 130 países são o rosto cru de uma verdade: a lei do mercado gera favorecidos e gera vítimas. A lentidão da chegada de vacinas a países como Portugal não tem comparação com a ausência absoluta de doses nos 130 países mencionados por Guterres. Mas há algo de comum às duas situações: o condicionamento pelas leis do mercado. São elas que geram essa lentidão e essa ausência.

Estamos fartos de saber que a pandemia potenciou as desigualdades e exclusões em todas as escalas. Em cada país, ela potenciou o poder dos de cima e a fragilidade dos de baixo. No mundo, ela potenciou as estratégias de dominação dos fortes e a dependência dos fracos. Este é um mundo em que a sobreconcentração de vacinas no norte global convive com a falta quase total de pessoal competente, locais adaptados e climatizados, material de esterilização, seringas no sul global.

De novo António Guterres: “O vírus proliferou porque a pobreza, a discriminação, a destruição do nosso ambiente natural e outras falhas de direitos humanos criaram enormes fragilidades nas nossas sociedades.” Mais que diagnóstico, estas palavras são um caderno de encargos para o que vem. Levá-las a sério implica duas coisas essenciais. A primeira é que a estratégia de saída da pandemia tenha no centro a erradicação disso que a criou e a fez alastrar: a pobreza, a discriminação, a destruição do ambiente e a violação dos direitos de todos. A segunda é que a vacina seja um bem comum da humanidade e que as patentes e as práticas comerciais internacionais não constituam travão a que assim seja. O norte global não se salvará se o sul global for deixado à sua sorte.

Para esse tempo pós-pandemia no país e no mundo levemos a lição da importância de haver um plano (palavra maldita) de vacinação em vez da disponibilização de vacinas para serem compradas por cada um ao seu valor de mercado. E de as exigências de saúde pública passarem completamente ao lado do regateio de compensações dos privados aos erários públicos.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 23 de fevereiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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