Os idosos contra o vírus III: a quem se deve telefonar?

porMaria Luísa Cabral

31 de março 2020 - 10:00
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Os noticiários tornaram-se um pesadelo. Não é possível ignorá-los mas ouvi-los acelera terríveis pensamentos, convoca-nos a todos para outra dimensão.

E o jornalista não se cansa: Resende, Ovar, Famalicão, Sintra, Vila Real, Albergaria-a-Velha. Uma amostra, não apanhei todos. Continuaremos o percurso nos próximos dias. Privados ou IPSS’s, os números de idosos concentrados nestes locais de despedida, com condições perto do nada, com pessoal reduzidíssimo mais difícil de disfarçar agora, pessoal impreparado para uma crise desta profundidade, o problema é sempre o mesmo, pensou-se que o remediado chegava. O vírus não avisou que vinha aí; o vírus não preveniu que eram precisos cuidados extremos; o vírus não concedeu nenhum tempo mínimo para os responsáveis prepararem os seus planos de contingência. E não, não acontece só aos outros. Acontece aqui e agora, abate-se sobre uma população muito envelhecida, de baixíssimos recursos financeiros, com hábitos muito frugais num dia a dia para o qual nem sabe reclamar mais e melhor. Famílias com poucos recursos, que sossegam quando conseguem uma vaga, alguém que olhe pelos seus. Às vezes como sabemos, cruelmente, a equação não é bem esta. Perante menor capacidade económica e menor literacia, agiganta-se o problema. É tempo de dizer não ao país pobre que somos, não podemos continuar a disfarçar as questões económica, social e educacional subjacentes.

“É obrigatório proteger os nossos idosos…Estas pessoas, quando são infectadas, têm elevado risco de contrair formas graves da covid-19 e de requerer cuidados hospitalares intensivos prolongados…Os lares de idosos devem ser cautelosamente protegidos de infecção importada por pessoas bem-intencionadas que desconhecem estar a transmitir o vírus. A protecção dos idosos e dos doentes crónicos vai ser crucial para o sucesso nos próximos muitos meses” (in Manuel Carmo Gomes, Público, 22.3.2020). Já ouvimos, lemos e vimos isto. Depois destas últimas 48 horas, a DGS pronunciou-se sobre o assunto e está a tomar algumas medidas. São absolutamente de saudar mas as autoridades a quem cabe a fiscalização destes lares (ou instituições similares) o que tencionam fazer? Chorar sobre leite derramado não adianta, perpetua o que é inaceitável. Não podemos pactuar, fechar os olhos fazendo de conta que foi apenas um momento menos bom. O problema dos lares de idosos não pode ser hierarquizado; a sua resolução não está em 2º ou 3º lugar numa lista de prioridades. A questão é uma prioridade, ponto final.

Ficam muitas perguntas no ar: quantas pessoas estão institucionalizadas? Qual é o ratio utentes/empregado? Quantos utentes por quarto? Qual a formação dos empregados? Quantos têm formação na área da saúde? Os quartos têm casa de banho? Que zonas sociais é que os lares dispõem? Qual é o ritmo de fiscalização? Que planos de segurança têm? E todas as demais. As autoridades têm de ter a iniciativa e avançar; se não o fizerem que sejam pressionadas, no Parlamento, na sociedade civil. Não pode é cair um manto de silêncio sobre o assunto, varrer para trás da cortina.

O mesmo epidemiologista, perspectivando o futuro, alvitra algo perturbador quando escreve que “Nesse mundo ideal, manteríamos a separação entre elas e os idosos, de forma a que as novas cadeias de transmissão se formassem apenas entre as pessoas de menor risco para doença grave”. Esta ideia foi depois mais expandida no noticiário das 20 na TVI na segunda feira quando o próprio respondeu a uma pergunta do Miguel Sousa Tavares que lhe pediu que clarificasse. E, de facto, clarificou, defendendo que se deveriam arranjar soluções para manter os idosos em isolamento social pelo tempo que fosse necessário. Quem ouviu estas afirmações não pode deixar de ter tido um sobressalto. É com a ciência que venceremos mas a ciência não poderá levar à desumanidade que transpira da proposta. Os idosos são pessoas, mesmo com a explicação que se trata de uma medida de protecção no seu próprio interesse, parece-me uma proposta com contornos sinistros, uma caixa de Pandora. Mesmo com a ajuda de psicólogos e sociólogos como foi sugerido, não, não e não. Antes que a proposta ganhe defensores, que alguém diga não. O “génio maléfico” (in Sarah Kaplan et al., Público, 24 de Março de 2020) do vírus fica com ele. Só faltava que o “génio maléfico” tomasse conta do espírito daqueles cuja missão é tratar de nós.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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