O primeiro-ministro iniciou o debate do Orçamento de Estado com um esquecimento e um truque. Esqueceu-se que este não é o primeiro Orçamento que apresenta, mas o terceiro, e que está na hora de avaliar o desastroso resultado social e económico da sua política.
Para fugir a essa mesma avaliação fez o truque do costume: anunciou, pela enésima vez, que quer diminuir os impostos. Depois de terem aumentado o IRS dos trabalhadores em 30%, taxado as pensões de toda a forma e feitio, aumentado o IVA até aos níveis mais altos da Europa, vêm agora prometer que um dia qualquer, quem sabe no de são nunca, os impostos hão de descer.
Entretanto, no “momento da verdade”, os impostos sobre quem trabalha continuam a aumentar e os salários e pensões a descer.
Mas as falhas de memória e os truques não se ficaram por aqui. A primeira falsidade, na verdade a que está na origem de toda a política do Governo, é a sua ideia sobre o papel do Estado. Chegámos onde chegámos, repetem todos os dias PSD e CDS, por causa do peso do Estado. Na cartilha ideológica que a direita recita sem parar, tudo o que é público é mau, tudo o que é privado reluz.
É o peso do Estado que impede o crescimento da economia, dizem-nos. São os salários dos funcionários públicos, ou as prestações sociais ou serviços públicos, que arruinaram a economia. Nada mais falso e o Governo sabe-o bem. É por isso que no preguiçoso e mal-amanhado guião do Estado nunca se usa nenhum dado comparativo com os restantes países europeus.
Mas se o Governo não faz as contas, fazemo-las nós. O peso da despesa pública em Portugal é de 47% do produto, contra 50% na zona euro. E isto são os números de 2012, antes dos brutais cortes que o Governo efetuou em 2013. O mesmo nos salários dos funcionários: 10,1% do produto em Portugal, muito abaixo da média europeia, e a léguas dos 16% da França, ou 18% da Dinamarca. Só o ano passado a função pública perdeu 5 em cada 100 funcionários.
Ao contrário do que repete a direita, a pergunta não é se nos podemos dar ao luxo de ter o estado social, que é a condição de igualdade que fez a nossa democracia, mas se pelo contrário nos podemos dar ao luxo de não ter estado social. O estado social não é apenas condição de igualdade mas de desenvolvimento económico.
Sejamos claros. Menos estado social, como se defende neste Orçamento de Estado, é outra forma de aumentar os impostos.
PSD e CDS não têm feito mais do que dividir Portugal em dois, tentando atirar trabalhadores do setor privado contra trabalhadores do setor público, empregados contra desempregados, trabalhadores no ativo contra reformados, contribuintes contra beneficiários de apoios sociais.
Não há dois países. Há um único Portugal. Um país de gente que trabalha, gente remediada na sua gigantesca maioria, mas onde quem trabalha contribui para garantir os cuidados mínimos na velhice e na saúde e a educação para todos. Neste país, só quem trabalha conhece as dificuldades e é capaz da solidariedade e do respeito. É quem trabalha que aguenta este país.
A austeridade falhou. Melhor, a austeridade falhou estrondosamente. O défice real, em 2011, foi de 7,4%. 6,4% em 2012. 5,9% em 2013. Nenhuma meta foi cumprida e, apesar de toda a austeridade, o défice quase não se mexe e a dívida disparou. É este o resultado de 25 mil milhões de euros em cortes salariais e aumento de impostos. O défice desceu, ao longo destes 3 anos, 3 mil milhões de euros. São 22 mil milhões de euros do nosso dinheiro deitados diretamente para o lixo.
Pior. É o próprio Governo quem reconhece que, sem as medidas de austeridade do Orçamento apresentado por Vítor Gaspar em 2012, o ano do “enorme aumento de impostos”, o défice ficaria nos 5.8%. Resumindo. Ficámos mais pobres para nada, ou melhor, ficámos mais pobres para a troika e o Governo fazerem de milhões de portugueses as cobaias de um violento programa de engenharia social.
Se o primeiro resgate destruiu a economia, e esvaziou o país, um segundo resgate teria consequências inimagináveis. É por isso que o Governo tenta encontrar, permanentemente, bodes expiatórios para o falhanço da sua obstinada política.
Só assim se explica a sanha da direita contra o Tribunal Constitucional. Passos Coelho e Paulo Portas pretendem responsabilizar, em maio de 2014, a Constituição que há muito desejam terraplanar, e os juízes do Tribunal Constitucional, pelo caos económico e social em que a sua política de austeridade lança o país.
Não é a Constituição, ou um coletivo de 13 juízes, que deixa o país a um passo do abismo. Pelo contrário, é a existência de uma Constituição que resulta do contrato social da democracia, e que não foi feita para se moldar aos interesses e pressões da banca, ou do Governo que circunstancialmente ocupa o lugar, que faz de Portugal um Estado de Direito.
Uma democracia e um Estado de Direito e não um protetorado, como vergonhosamente o vice-primeiro ministro passa os dias a repetir.
O Bloco de Esquerda rejeita esta chantagem e apresenta um programa orçamental que assenta no essencial, focando-se em três eixos centrais.
Uma reforma fiscal corajosa e justa, taxando as grandes fortunas e protegendo pensões e salários, defendendo a equidade social.
Renegociação da dívida, com um programa para a diminuição do seu peso no PIB e indexação dos juros ao crescimento da economia e às exportações. A solução anunciada por Vítor Gaspar, e continuada neste “novo” velho ciclo do Governo, é prolongar a austeridade por mais 20 ou 30 anos para pagar uma dívida que, todos percebemos, é impagável. Não há democracia que resista, não há economia que sobreviva a este programa.
Medidas para recuperação da economia e do emprego, apostando no investimento público de proximidade, como é caso da reabilitação urbana. A reposição dos salários ou pensões, bem como a diminuição do IVA, permitirá recuperar dezenas de milhares de postos de trabalho e diminuir os encargos do Estado em prestações sociais.
A escolha que se coloca em democracia é entre a chantagem do abismo, e da doentia repetição que temos que repetir tudo o que tem falhado nos últimos 3 anos, ou a urgência de defender um país onde a emigração não seja a primeira e última opção.
Dirão que as propostas que fazemos não são isentas de dificuldades. Sabemos bem. Mas são a escolha possível e necessária. Impossível é insistir num rumo que destrói a cada dia mais de 500 postos de trabalho e vê a cada dia 300 portugueses e portuguesas em idade ativa a abandonar o país. Impossível é cortar mais nas pensões que, no país do desemprego, sustentam três gerações. Impossível é viver o paradoxo cruel de um país que tem cada vez menos crianças e cada vez mais crianças pobres. Impossível é aceitar a destruição da cultura, da escola, do SNS, da segurança social. Impossível é aceitar o jugo permanente da finança internacional.
As escolhas difíceis, da soberania e da renegociação da dívida, da equidade fiscal e da recusa da chantagem dos grandes grupos económicos, são as únicas escolhas possíveis para um país digno com gente dentro.
Entre o abismo e o futuro não hesitamos. Escolhemos um futuro em liberdade.
Intervenção na Assembleia da República, no debate do Orçamento do Estado, em 31 de outubro de 2013