Como sempre acontece, nem todas as previsões acertaram. Dos resultados destas eleições europeias saiu um Partido Popular Europeu reforçado, uma diminuição maior do que esperada de Liberais e Verdes, uma pequena diminuição do centro-esquerda e o crescimento da extrema-direita, fulgurante nalguns países, menor que o anunciado noutros. A esquerda europeia, à esquerda dos socialistas e democratas, resistiu e, embora com dificuldades, dá sinais importantes de recomposição em alguns países. A esquerda italiana reentrou no parlamento Europeu. A esquerda nórdica cresceu, particularmente na Finlândia como reação a um governo que integra a extrema-direita. Em França, perante a convocatória de eleições antecipadas por Macron, foi já anunciada uma nova Frente Popular (com França Insubmissa,Verdes, Partido Socialista, Partido Comunista e outros grupos), convocando a memória de 1936, quando se constituiu um governo de aliança das esquerdas que foi responsável por alguns dos maiores progressos para as classes populares (desde logo, a consagração de férias pagas ou da semana de 40 horas), numa época em que, noutros países europeus, era o fascismo que avançava.
Este sinal francês, que resulta de um sobressalto contra o tapete que Macron parece estender à extrema-direita para governar (reforçado pelo anúncio do líder dos Republicanos, a direita clássica gaulista, de que está disponível para uma aliança com a extrema-direita), contrasta com os negócios que entretanto se fazem para os lugares de topo da União. Ursula Von der Leyen, empenhada defensora do genocídio cometido por Israel em Gaza e que passou os últimos meses a negociar com a extrema-direita de Meloni a sua sobrevivência à frente da Comissão (facto aliás que Marta Temido criticou em campanha), conta agora, tudo indica, com o apoio dos socialistas europeus para se manter no poder, num pacote que inclui provavelmente a indicação de António Costa para a presidência do conselho europeu, com o patrocínio de Montenegro. Afinal, o centrão está disponível para os seus entendimentos e negócios e pouco importa que Von der Leyen seja a mesma que Costa acusou em tempos de ceder ao “canto de sereia” da extrema-direita.
Coincidências da história, estas eleições europeias aconteceram ao mesmo tempo em que se realiza em Genebra a conferência da Organização Internacional do Trabalho, a única organização internacional do sistema da Sociedade das Nações que lhe sobreviveu. Quando no pós Segunda Guerra se tratou de refundar a OIT perante a vitória contra o fascismo e o nazismo, foi aprovada a Declaração de Filadélfia, em maio de 1944, faz agora 80 anos. Integrada na constituição da OIT desde então, este documento afirma os princípios sobre os quais se funda a organização. O primeiro de todos: “o trabalho não é uma mercadoria”. O espírito de Filadélfia é a afirmação do compromisso mundial contra uma ordem fundada no mercado, elevando a dignidade humana a pedra de toque de todo o edifício jurídico internacional, submetendo a economia ao princípio da justiça social. Foi também esta disposição que, num belo filme, Ken Loach chamou de “Espírito de 45”, sob o qual foram erigidos os estados sociais, o controlo democrático da economia, consagrados direitos sociais fora da organização mercantil. Num outro tempo histórico, foi com esse compromisso forte que se enterrou a extrema-direita da época.
Em que medida pode o “espírito de Filadélfia” inspirar-nos hoje face ao momento europeu? De que alianças precisamos e em torno de que valores? Que pequenos passos podemos dar com as forças que temos? Em que gestos deve a esquerda encontrar-se?
Dou um pequeno contra-exemplo desta semana, em Bruxelas. Enquanto tantos fascistas se acotovelam para ocupar as suas cadeiras no novo Parlamento e os grupos do centrão europeu se agitam na negociação dos lugares para o continuísmo, uma eurodeputada portuguesa, Anabela Rodrigues, eleita pelo Bloco, levará ao Parlamento europeu um grupo de algumas dezenas de trabalhadoras do serviço doméstico, a maioria portuguesesas, muitas migrantes, que representam provavelmente o setor mais apoucado e menos reconhecido do mundo do trabalho, com altos níveis de informalidade, ausência de acesso a direitos elementares de proteção social, com um trabalho desvalorizado só notado quando não é feito, em que a exploração se cruza com a desvalorização do trabalho das mulheres e a discriminação do trabalho racializado. Na quinta-feira, elas ocuparão o espaço e tomarão a palavra no Parlamento Europeu, apresentarão uma peça de teatro sobre os seus problemas, juntando-se na sexta-feira à Liga das Trabalhadoras Domésticas de Bruxelas, em greve na véspera do Dia Mundial do Trabalho Doméstico, assinalado todos os anos a 16 de junho.
É pouco? Talvez. Mas é como essa “pequenina luz” de que falava Jorge de Sena, “brilhando incerta”, “bruxuleante e muda/ como a exactidão como a firmeza/ como a justiça”. E é também dessas pequeninas luzes bruxuleantes, ou desses pequenos grandes gestos, que pode porventura nascer outra Europa.
Artigo publicado em expresso.pt a 12 de junho de 2024
