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Merkel e Putin: diplomacia ucraniana

Os únicos atores que realmente interessam na questão ucraniana são a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente da Rússia Vladimir Putin.

Há um enorme esforço diplomático a decorrer nestes dias a propósito da quase guerra civil na Ucrânia. Mas os únicos atores que realmente interessam são a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente da Rússia Vladimir Putin. São também os únicos atores que estão a tentar efetivamente reduzi-la ao mínimo e chegar a algum tipo de acordo político.

Ambos são muito poderosos, muito focados nas questões essenciais, e ambos trabalham muito para cumprir esta difícil tarefa. São poderosos, mas não todo-poderosos. Cada um deles tem de lidar com outros atores na Alemanha, na Rússia, na Ucrânia e noutros lugares, atores que não querem que se chegue a um acordo político; pretendem, pelo contrário, intensificar e expandir o conflito, e por isso tentam sabotar quaisquer negociações entre Merkel e Putin.

A primeira coisa a notar é que cada um deles tem uma meta. A chanceler Merkel quer garantias de que a integridade territorial da Ucrânia seja completa e permanentemente honrada (com a exceção da Crimeia). O presidente Putin quer garantias de que a Ucrânia jamais será membro da NATO.

Quando se analisa a retórica de uma disputa pública, é importante observar não só o que é dito, mas também o que não é dito. Vamos relembrar as declarações públicas de Merkel, de Putin e de outros nos últimos dez dias de agosto de 2014. A 3 de agosto, a chanceler Merkel fez a sua primeira viagem a Kiev para se encontrar com o presidente ucraniano Petro Poroshenko e outros. Disse que iriam decorrer conversações de paz em Minsk entre Poroshenko e Putin a 26 de agosto. Isto era positivo, observou, recordando porém a Poroshenko e ao mundo que as conversações não iriam produzir “um grande avanço”. Numa entrevista à televisão alemã ARD, observou: “Mas tem de haver conversações se se pretende encontrar uma solução”. E acrescentou: “Estou convencida de que só há uma conclusão política, para a qual a União Europeia e a Alemanha querem e devem contribuir.” Reparem na frase “só há uma conclusão política”.

A chanceler deu uma conferência de imprensa com Poroshenko na qual sublinhou: “Não nos devemos concentrar num conflito militar”. E acrescentou estas palavras, que Poroshenko esperava não ouvir: “Tem de haver um cessar-fogo bilateral”. Poroshenko vinha defendendo um cessar-fogo unilateral, conseguido unicamente através da retirada de forças em Donetsk e Luhansk. Poroshenko respondeu: “Infelizmente, sempre haverá uma ameaça militar à Ucrânia.

Houve outros jogos de palavras. Quando, depois de um atraso considerável, os camiões russos entregaram com sucesso o seu pacote humanitário em Luhansk e foram-se embora em seguida, Poroshenko chamou-lhe uma “invasão”. Merkel fez coro com o presidente dos EUA e afirmou que a ajuda russa era uma violação da soberania da Ucrânia, evitando cuidadosamente o termo “invasão”.

Quando Andriy Lysenko, o belicista porta-voz do conselho de Segurança Nacional e Defesa da Ucrânia, acusou os russos de estarem a retirar equipamento militar para evitar exporem-se, Oleg Tsarev, presidente do Parlamento da Nova Rússia, que une as repúblicas do Donetsk e de Luhansk, disse que as acusações de Lysenko eram “estúpidas”, já que, argumentou, “se tivéssemos querido fazer isso, controlamos secções menos visíveis da fronteira e não o faríamos num “comboio humanitário sob os olhares do Mundo”.

Finalmente, reparem nisto: quando Putin respondeu a acusações de Obama de que a Rússia tinha enviado tropas para a Ucrânia e estava a incentivar uma escalada do conflito, afirmou que russos e ucranianos “são praticamente o mesmo povo”. O brinde, aqui, é o advérbio “praticamente”. Permite que Putin chegue um acordo negociado, o que não teria sido possível se estivesse ausente.

Nesta altura, começaram a ouvir-se outras vozes. Anders Fogh Rasmussen, o dinamarquês que é o secretário-geral cessante da NATO, um conhecido falcão, disse que a NATO iria decidir pela primeira vez o deslocamento das suas forças na Europa do Leste. É tão certo assim que é isto que a NATO vai decidir? Os membros da Europa ocidental têm-se oposto frontalmente a esta ideia, até o momento, considerando-a uma provocação direta à Rússia. Esta relutância cria particulares preocupações aos estados bálticos e à Polónia. Num artigo de opinião publicado no New York Times, Slawomir Sierakowski, conhecido analista polaco, acusou esta política de transformar os estados da Europa do leste em “membros de segunda classe” da NATO e de ser “uma postura fraca, de joelhos, dos antigos membros da NATO, em particular da Alemanha”.

O impulso militar do governo ucraniano contra as regiões rebeladas titubeou fortemente, expondo a sua fraca competência militar. Apesar de as movimentações russas que se seguiram na área terem sido apontadas como uma nova grande ofensiva, é provável que Moscovo seja alvo apenas de mais algumas sanções. Não só os Estados Unidos, mas também a Grã-Bretanha, a França, e a Alemanha deixaram claro que não encaram a possibilidade de enviar tropas para a Ucrânia por alguma razão previsível. Sanções, sim, até certo ponto; tropas não. Mas o que o governo ucraniano está a pedir é tropas, assim como a entrada urgente na NATO.

A grande questão hoje é saber qual dos lados está a ser mais atingido pelas sanções e contra-sanções. Os Estados Unidos e a Europa ocidental esperam reduzir significativamente o rendimento real da Rússia reduzindo radicalmente a sua capacidade de exportar petróleo e gás. A Rússia, em resposta, cortou a compra de produtos agrícolas e outros da Europa ocidental. Isto não apenas afeta negativamente os produtores europeus, mas arrisca-se, a longo prazo, a privar os países europeus dos seus projetos de investimento na Rússia. A Rússia também aludiu a pôr fim à sua cooperação na luta por reivindicar o direito ao petróleo do Ártico.

Provavelmente, ambas as partes serão crescentemente atingidas, em termos económicos, por estas sanções e contra-sanções. Entretanto, Obama terá de decidir até que ponto precisa da cooperação da Rússia para a sua nova prioridade de criar uma grande coligação para destruir as forças do Califado no Iraque e na Síria.

Será que o conflito na Ucrânia vai entrar numa escalada até chegar a um verdadeiro conflito militar baseado nos temas da Guerra Fria? Na esquerda, na direita e no centro do espectro político mundial há quem preveja que isto vai acontecer. Não acredito nisso – precisamente devido aos esforços de Merkel e de Putin, que vão-se manter, mesmo que a retórica se torne mais estridente.

Podem Merkel e Putin fazer um acordo? Em teoria, é bastante possível. Como Henry Kissinger apontou enfaticamente no seu artigo de opinião no Washington Post, o elemento chave é a Finlandização. “[A Finlândia] não deixa dúvidas acerca da sua feroz independência e coopera com o Ocidente na maioria dos terrenos, mas evita cuidadosamente a hostilidade institucional em relação à Rússia”. A Finlândia é membro da União Europeia e da Eurozona, mas nunca pediu para entrar na NATO.

Immanuel Walerstein

Comentário n.º 384, 1 de setembro de 2014

Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e professor universitário norte-americano.
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