Lugar de fala e tomar partido

porBruno Góis

25 de setembro 2022 - 11:08
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Quão positivo é para a história (e autoconsciência) da classe trabalhadora que pensadores e ativistas negros tenham contribuído para o estudo da branquitude? O capitalismo imperialista, patriarcal e racista é que nos quer divididos.

Nas vésperas da cisão entre a União Soviética e a China, o dirigente soviético Nikita Khrushchev terá tido uma conversa azeda com o dirigente chinês Zhou Enlai. Nikita Khrushchev afirma acidamente “nós não nos entendemos porque eu sou um operário metalúrgico descendente de camponeses; e tu és descendente dos mandarins, a casta dominante chinesa. Não temos nada em comum”. Zhou Enlai responde calmamente: “A verdade é que temos. Somos ambos traidores das respetivas classes”. Esta anedota marcada por exageros e sectarismos ilustra, ainda assim, uma ideia: cada pessoa fala a partir de um lugar e cada pessoa toma partido.

Na história da sua vida, o humorista português Raul Solnado conta que por ser “muito pobrezinho” foi deixado à porta da casa de “uns marqueses muito ricos” que “tinham sopa, gravatas e tudo”. O “marquês”, explica Solnado, trabalhava numa oficina de bate-chapas, “era um marquês proletário”. Além da graça com que o humorista conta a sua história, há neste texto algo com que me identifico. Nascido numa família pobre, qualquer família com salário certo e casa própria, aos meus olhos de criança, parecia algo próximo da aristocracia ou da burguesia.

Cada pessoa fala a partir de um lugar. Vejamos exemplos. Contemporâneo de teorizadores racistas europeus e eurodescentes, que justificavam a supremacia branca nos EUA e o colonialismo em África, W. E. B. Du Bois, o primeiro afro-americano doutorado em Harvard, publicou a primeira investigação sociológica sobre a comunidade negra dos EUA (1899). Du Bois, panafricanista e antirracista, pensou a emancipação racial e nacional no confronto com o capitalismo.

Também as feministas socialistas negras, entre as quais Angela Davis, desenvolveram o pensamento sobre o género, a raça e a classe (1981). E a jurista afroamericana Kimberlé Crenshaw (1989) cunhou a expressão “interseccionalidade” a partir dos estudos críticos do direito, evidenciando o cruzamento das diferentes estruturas de opressão.

Pelos caminhos abertos por Du Bois, também se desenvolveram os estudos da branquitude. Entre esses autores, importa destacar o historiador euroamericano David Roediger e a historiadora afroamericana Nell Irvin Painter. David Roediger discutiu as “vagas da branquitude”, ou seja, o processo através do qual as sucessivas vagas de trabalhadores imigrantes nos EUA foram sendo cooptados para o conceito de branquitude (1991), abordando de forma sólida a relação entre classe e raça e a ligação umbilical entre o racismo e o capitalismo (2017). E Nell Irvin Painter escreveu a “história dos brancos”, retirando à branquitude o seu caráter universal e restituindo-lhe o seu lugar específico na história da humanidade (2010).

Quão positivo é para a história (e autoconsciência) da classe trabalhadora que pensadores e ativistas negros tenham contribuído para o estudo da branquitude? Quão importante tem sido que os próprios brancos tenham avançado com investigação e ativismo antirracista? O capitalismo imperialista, patriarcal e racista é que nos quer divididos. A quem detém o poder é que interessa a divisão do campo do progresso. A quem quer mudar o sistema interessa juntar solidariamente todas as pessoas exploradas e oprimidas.

É importante ter critérios de identidade no protagonismo das lutas: é impensável um marroquino ser o porta-voz da libertação sarauí. É inegável a posição favorável dos indivíduos de determinado grupo para se compreenderem a si mesmos. No entanto, isso não pode ser confundido com a criação de barreiras na luta e no conhecimento. Judith Butler (1990), uma pessoa não-binária e lésbica, deu contributos fundamentais para que um homem numa relação heterossexual como eu possa tomar partido e participar no combate contra a estrutura patriarcal que, embora em medida diferente, também me oprime.

Assumir a interseccionalidade e a luta de classes até às últimas consequências exige que se compreenda de que forma se articulam as várias estruturas de exploração e de opressão. Exige que, lado a lado, tomemos partido. Continua a ser poderoso o slogan dos anos 1970: “gay power, black power, women power, student power, all power to the people”.

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Crenshaw, Kimberlé. 1989. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”. University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989, Article 8. Available at: https://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8.

Davis, Angela. 2016 [1981]. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo.

Du Bois, W. E. B.. 2010 [1899]. The Philadelphia Negro. New York: Cosimo.

Butler, Judith. 2017 [1990]. Problemas de Género Feminismos e subversão da identidade. Lisboa: Orfeu Negro.

Painter, Nell Irvin. 2010. The History of White People. New York: W. W. Norton & Company.

Roediger, David. 2007 [1991]. The Wages of Whiteness: Race and the Making of the American Working Class. London and New York: Verso.

Roediger, David. 2017. Class, Race, and Marxism. London and New York: Verso.

Bruno Góis
Sobre o/a autor(a)

Bruno Góis

Investigador. Mestre em Relações Internacionais. Doutorando em Antropologia. Ativista do coletivo feminista Por Todas Nós. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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