Israel, licença para matar

porAna Bárbara Pedrosa

17 de maio 2018 - 20:43
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A complacência deriva em corpos tombados, a indiferença acaba em tumbas. Nem o Médio Oriente é televisão nem nós podemos ser espectadores.

1. É dia de festa em Israel

É dia de festa em Israel. 12 points to Israel vezes várias vezes deu 529 pontos dos espectadores e 212 do júri e uma vitória neste país que também colonizou. Na televisão pública portuguesa, e portanto nas televisões de todo o mundo, via-se a bandeira israelita mais vezes do que as outras, e o mesmo aconteceu no final da competição. A bandeira adoptada em 28 de Outubro de 1948, cinco meses após a criação oficial do Estado de Israel, mostrava a sua Estrela de David azul num fundo branco, entre duas faixas azuis horizontais. Para quem sabe o que aconteceu aí e o que viria a acontecer depois, ver aquela bandeira agride. Vê-la é uma agressão e envergá-la é uma agressão, impedir as bandeiras palestinianas na Eurovisão é resolver apoiar um lado.

Netta Barzilai, 25 anos, emocionou-se, sorriu, chorou, e fez-se a festa com luzes, música, estrondo. Estrondo? Será fogo de artifício?

Não, é o regabofe triunfalista, os oito ataques feitos no mesmo dia sobre Gaza, e aquele baque que se ouve ao fundo é mais um corpo tombado. No dia em que Israel fazia a festa, centenas de palestinianos preparavam o seu dia-a-dia, mais cerimónias fúnebres.

Hebron, Janeiro de 2018

Netta agarrou o microfone, disse o que soa a ofensa: “Next year in Jerusalem!”. No próximo ano, na cidade saqueada, que Trump resolveu considerar capital de Israel, chutando para canto, uma vez mais, a Palestina. Ora, nesse mesmo dia, o que seria um dia de festa para sionistas e trumpistas foi, na verdade, um dia de mortos. Enquanto se cortava a fita na nova Embaixada, aviões sobrevoavam Gaza, balas eram disparadas, corpos tombavam. O aniversário de 70 anos de Estado foi marcado por mais de 50 mortos e mais de 2 mil feridos. Acendem-se velas como quem dispara tiros, e entretanto até bebés de oito meses perecem, de tão ameaçadores. Israel vê os ataques carniceiros e justifica-os: são legítima defesa. Os tiros são disparados para se defenderem das mãos nuas que mais não querem do que rejeitar a prisão humilhante em Gaza a que Israel os condenou.

2. Para onde vamos?

 

É que aquilo que é um corpo tombado como um tordo é um ser humano cheio de tudo que nunca mais respirará, que não conhece o dia de hoje, que não conhecerá o de amanhã. Alô, Israel, estamos aí? Aqueles vultos ao longe, pequenos, que levam com balas, minúsculas, são pessoas.

São pessoas com um passado, sonhos e família. Pessoas que sentem dor na carne quando os tiros a perfuram, que ficam cegos ao gás lacrimogéneo. Pessoas que se armam com a pele, rebatem com pedras. Mas crianças tombam, Netanyahu vê-as mortas, insiste na legítima defesa para mascarar o massacre imperdoável, inominável, execrável.

E fá-lo em nome de si mesmo. Em nome da sua defesa, Israel ataca. E em nome da sua legitimidade sobre um território, prometida num livro sagrado, prossegue a cavalgada, saqueia, rouba casas e terra, rouba vidas. A lei internacional é tão violada quanto os direitos humanos.

Para proteger O Povo Eleito, encarcera gente entre paredes, trata-a como gado. Gaza e a Cisjordânia são prisões. Na primeira, entre 41 quilómetros de comprimento por 6 a 12 de largura, vivem dois milhões com água racionada. A pequena parcela de terra está cercada por um muro e soldados, são aliás estes quem controla o que entra e sai. Sem grandes hipóteses, o desemprego está nos 70%. O pão nosso de cada dia são as expedições militares e os tiros. Queremos música? Soa a bateria. Matam-se os vultos que aparecem, destroem-se infra-estruturas necessárias à sobrevivência, e sobrevive-se dependendo-se de ajuda humanitária. Há passagens para que essa ajuda aconteça, Israel decidiu fechar uma porque sim há dias. Onde parará a crueldade?

Hebron, Janeiro de 2018

Dentro da Cisjordânia, pessoas vivem rodeadas por muros. Refiro-me a 700 quilómetros de betão e arame farpado que a separam do mundo e tratam os palestinianos como criminosos, presos, de castigo, gente que não pode sair.

3. Afinal, como é que chegámos aqui?

 

1948, Ben-Gurion, que dá o nome ao aeroporto de quem aterra em Telavive, capital de Israel (capital de Israel, capital de Israel, capital de Israel), engendrou o plano e, meses depois, cerca de 800 mil pessoas foram expulsas das suas casas, de forma a que Israel pudesse ter o seu Estado como queria, de forma a que pudesse cumprir o sonho d'O Povo Eleito: um Estado judaico, etnicamente limpo, cuja instalação foi permitida pelo mundo. Com base nele, Naqba, a catástrofe: gente que fica com as chaves das casas demolidas, gente a quem o próprio solo deixa de pertencer-lhe, gente que ficará condenada, nos próximos 70 anos, a uma sub-existência, à subjugação execrável de quem usurpou terras, matou, incendiou, disparou, colonizou, e para mais com a placidez internacional. Alô, mundo, ainda aí estamos?

É nas cinzas deste crime que Israel se ergue, triunfante. A este dia (feliz aniversário!) chama Liberdade, a este dia a Palestina chama Catástrofe, o mundo inteiro devia ver a catástrofe que está nisto.

Jerusalém, Janeiro de 2018

4. Vamos para onde?

 

O plano de um território etnicamente uno não pode contar com a complacência internacional. É um atentado, um insulto, um crime, é ele que guia o projecto sionista e remete tudo o que lhe é uma erva daninha para o preciso estatuto de erva daninha – é matar palestinianos porque não são gente. É arrancar as ervas do jardim judaico.

A solução para a pedra branca de Israel continuar erguida seria a expulsão dos árabes. Não haveria espaço para concessões, não haveria compromissos. Era limpá-los para que o livro religioso se cumprisse.

Hebron, Janeiro de 2018

E, com isto na sua história, com isto no seu dia-a-dia, Israel faz-se representar na Eurovisão por uma cantora que vem à Europa cantar o seu “I'm not your toy”, dizer que ama o seu país enquanto agradece a aceitação da “diferença”, enquanto agradece que se “celebre” a “diversidade”. She loves her country, enfim, next year in Jerusalem.

E as opiniões pululam: muito bem, viva a diversidade, ora aqui está um país que veio com uma mensagem política, cada humano vale um humano, não se aceita o desrepeito, nobody is nobody's toy.

Checkpoint em Hebron, Janeiro de 2018

 

Entretanto, com estas mensagens igualitárias, Israel vive impondo-se internacionalmente como o único Estado democrático do Médio Oriente. O único que respeita os direitos humanos, respeita mulheres, gays e tudo, que moderno, belo e respeitador. Aparece de cara lavada e branca, fato e gravata, e os bolsos cheios de granadas. Mas a Palestina não conta, a cavalgada prossegue, os Estados Unidos dão a mão, a Europa dá doze pontos a Israel, nenhum Estado tem a coragem ou a decência de declarar boicote, nenhum Estado tem a coragem ou a decência de não colaborar com a carnificina, e assim se vai aceitando a ignomínia.

O processo de Oslo veio tornar possível o regime de apartheid. Permitiu a limpeza étnica e a segregação, que se erguessem muros e construíssem checkpoints, que se prendesse gente nas fronteiras, que os colonatos se multiplicassem por aí ao deus-dará. Entre Ramallah e Jerusalém, há ainda um checkpoint conhecido pelo número de partos de mulheres palestinianas (Qalandya), porque páram ali as grávidas em vez de lhes ser dado rápido acesso a um hospital. Uma mulher tem um filho a sair-lhe do útero, embrulhado na placenta, mas é palestiniana, tratada como criminosa pois será.

 

Isto só entra na cabeça de quem entender que a colonização passa mesmo pelo apartheid descarado e o grau de racismo fanático a comandar a política israelita. Ze'ev Boim, que teve ao leme três ministérios, dizia que o “terrorismo islâmico pode ter razões genéticas”. Efi Eitam, do partido de direita Ihud Leumi e comandante militar, defendia a expulsão dos palestinianos da Cisjordânia e a exclusão dos árabes israelitas da política do país. Considerava que não se podia “permitir a permanência dessa presença hostil nas instituições de Israel”. Avigdor Lieberman, líder do partido de direita Beiteinu, actual ministro da Defesa e ex-ministro para Assuntos Estratégicos, dizia, aquando do desempenho desta última função, que “os árabes israelitas são um problema ainda maior do que os palestinianos e a separação entre os dois povos deverá incluir também os árabes de Israel. Por mim, podem pegar na baklawa [doce árabe típico] deles e ir para o inferno”. Yehiel Hazan, do Likud, também não se ensaiava nada, chamava “vermes” aos árabes e ponto final.

Não é este o Estado que instrumentaliza o Holocausto em prol da impunidade?

5. A quem pertence isto tudo?

 

De quem é Jerusalém, afinal? Duplamente ocupada, primeiro baseando-se na resolução nº 181, de 28 de Novembro de 1947, que permite a existência de Israel enquanto Estado; depois ignorando a nº 242, de 22 de Novembro de 1967, que considera ilegal a ocupação dos territórios roubados em 1967. Mas não faz mal, a saga continua, amanhã haverá outro episódio, prossegue a violência triunfalista. Aliás, quem não se lembra dos soldados que riam enquanto aleatoriamente disparavam sobre um palestiniano desarmado, que deambulava? A guerra, a chacina, o regabofe continua. É tão divertido, pois não?

Muro das Lamentações, Jerusalém, Janeiro de 2018

Corpos de adultos que tombam, pessoas enterradas, bebés cuja vida é roubada duas vezes, velhos árabes que são humilhados por putos da minha idade e mais novos. Viva a diversidade, há mortos para todos os gostos, crueldade para todos os gostos, só uma verdade existe, e para isso precisa de tão pouco: um livro escrito por Theodor Herzl, uma comunidade internacional que rompe as mãos em sabonete.

E, entretanto, a sabotagem organizada, crua, fulcral: estradas fechadas, paredes erguidas, água racionada, tiros para todo o lado, aviões que sobrevoam, gás lacrimogéneo. Não têm vergonha? Conseguem dormir à noite? Percebem, ao olhar para a História, que são o seu lado negro?

A estratégia eficaz alimenta-se ainda da complacência fora de portas, com uma comunicação social feita Pilatos, que ainda tem o topete de criar títulos como o que vimos no Expresso esta semana:

Expresso, 14 de Maio de 2018

O que está errado neste título? Será fingir que mortos e feridos não estão só de um lado? Será esconder que soldados lutam contra povo? Será fechar os olhos às armas de um lado, às mãos do outro? Será lavar as mãos perante a chacina? Será a complacência? Parabéns, Expresso, isto é que é olhar sem ver. É também disto que se faz a indiferença que permite este nojo-asco-náusea-repulsa.

 

6. E dar cabo disto tudo?

Não há que aceitar o racismo omnipresente nem a banalização do mal. E não há como fechar os olhos a esta necessidade constante de humilhar o outro, de que tirar o mais fundo que tem de dignidade.

Em Janeiro, aterrei em Telavive. Perguntaram-me a que cidades ia, só disse cidades palestinianas. Perguntam-me “You know you are in Israel and not in Palestine, right?”. Dei a única resposta possível: “Yes, Tel-Aviv, Israel”. Estava em Israel havia dez minutos, ali começava a lavagem cerebral, a pressão, a reivindicação da posse do chão pisado.

Hebron, Janeiro de 2018

Estamos em 2018, já não é possível ignorar a tragédia em que derivou a criação do Estado de Israel, os contornos em que foi feito, todos os pequenos e grandes episódios de crueldade e crime. A impunidade dá espaço a isto, enquanto existir existirá o regabofe.

Estamos em 2018 e cabe a todos exigir a única coisa que deve ser inultrapassável no mundo: os Direitos Humanos como restrição aos poderes políticos e militares. A nossa parte está ao nosso alcance: boicotar, desinvestir e aplicar sanções ao Estado de Israel. Ficar quieto e calado é colaborar com a limpeza étnica do povo palestiniano.

Poupar-me-ão os sionistas à acusação de anti-semitismo, tão útil para ser usada com quem se opõe ao massacre. Isto nada tem que ver com ser-se ou não judeu. Quem se indigna com esta chacina – seja ateu, cristão, muçulmano, judeu, etc., etc. – tem uma caminho a seguir: boicotar Israel. Comprar produtos a Israel, fazer turismo em Israel, participar em conferências, traduções, o que for, tudo o que der prestígio, nome, dinheiro ao Estado de Israel dará balas e mortes.

A complacência deriva em corpos tombados, a indiferença acaba em tumbas. Nem o Médio Oriente é televisão nem nós podemos ser espectadores.

Já não pode haver palavras mansas, falar de acordos de paz é enveredar pelas tretas, pelas palavras líricas sem o potencial da concretização material. Israel não tem a menor intenção de retirar-se, de assumir-se como potência colonizadora, de descolonizar enfim. Ficar à espera de que as coisas se encaminhem só porque sim, de que o mundo se nivele, é dar a mão à prepotência e ao fanatismo, é ajudar a enterrar mais mortos. O boicote é a única solução, as sanções são o único caminho.

Fotografias de Ana Bárbara Pedrosa, Palestina, Janeiro de 2018.

Ana Bárbara Pedrosa
Sobre o/a autor(a)

Ana Bárbara Pedrosa

Escritora. Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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