Recentemente, soubemos que Portugal é o país da OCDE com a maior disparidade entre preço da habitação e rendimentos disponíveis. A crise da habitação, que não é de agora, não pára, porém, de se agravar, atingindo contornos absolutamente dramáticos para quem vive em Portugal. Neste contexto, a proliferação de bairros autoconstruídos e os casos de mães a quem os filhos são retirados por não poderem pagar uma casa são exemplos ilustrativos. Perante este cenário inaceitável, que nem PS nem PSD/CDS foram capazes de travar, impõe-se a discussão de medidas sérias que possam travar esta emergência social.
O Bloco já avançou que uma das prioridades desta campanha será o controlo das rendas, nomeadamente através da decretação de tetos máximos em função da localização do imóvel, tipologia, entre outros critérios. As vozes do costume apressaram-se a desqualificar esta proposta, pois vai contra a ortodoxia (neo)liberal de ‘deixar o mercado funcionar’. Ora, foi precisamente o funcionamento desregrado do mercado que nos trouxe até aqui – valerá a pena, por isso, pensar noutras opções. Assim sendo, o controlo de rendas é um instrumento necessário e útil para uma política de habitação, cujos méritos e limitações devem ser discutidos.
Não é a construção, estúpido!
É importante começar por desconstruir os argumentos dominantes sobre a questão da habitação. A ideia mais frequente é que este problema se deve a um desequilíbrio entre uma procura forte e uma oferta insuficiente. Os arautos desta tese apontam para o declínio da construção por comparação com o início do século e apostam que um aumento da oferta levará naturalmente a uma descida de preços.
Há várias razões para duvidar desta panaceia. À partida, seria irrealista manter os ritmos de construção extraordinários que Portugal experienciou na viragem do século, que foram também sustentados num forte endividamento da economia como um todo e parcialmente responsáveis pela viragem da economia portuguesa para setores rentistas e não-transacionáveis. É também difícil imaginar o impacto ambiental da manutenção daquele ritmo de construção ou onde se encontraria espaço para construir desenfreadamente nas grandes cidades, onde a crise é mais grave e o terreno é escasso.
Mais importante ainda, se se tratasse realmente de um problema de oferta de habitação, deveríamos focar-nos no stock de habitação – pouco interessa se a construção é de agora ou de há 20 anos, o que importa é a quantidade de casas disponíveis. É aqui que o argumento cai completamente por terra, pois, como demonstra Nuno Serra, o rácio entre o número de alojamentos e o número de famílias quase não se alterou ao longo dos últimos anos, mantendo-se «em torno de 1,5 (uma casa e meia por família) em 2011 e 2021, sendo aliás superior ao valor registado em 2001 (1,4)».
Na verdade, o aumento exponencial do preço das casas e das rendas desde a crise financeira não se explica por falta de oferta, mas só pode ser compreendido no contexto da financeirização e turistificação da economia portuguesa. O uso das casas como um ativo financeiro por grandes investidores e indivíduos de alto rendimento, assim como o desvio de parque habitacional para fins turísticos (alojamento local e hotéis), explicam em grande medida a extraordinária valorização dos imóveis em Portugal. Este foi o resultado de escolhas políticas nacionais e autárquicas, que visaram recuperar a economia portuguesa através da procura externa milionária por imobiliário e do turismo, com consequências desastrosas para a economia portuguesa e para quem precisa de uma casa para viver.
Colocar um travão
Assim sendo, quaisquer intervenções para estimular fiscalmente ou remover obstáculos para a oferta ou para a construção estão destinadas a fracassar. Na presença de uma procura externa insaciável, a nova construção ou oferta deslocar-se-á naturalmente para os segmentos de luxo, que são mais rentáveis para os promotores, mas inacessíveis para quem vive do seu trabalho. Medidas paliativas para conter aumentos de preços também não são suficientes – eles já estão demasiado altos, é preciso baixá-los.
É neste contexto que nos reencontramos com a ideia do controlo de rendas. Em teoria, ele pode ser feito de várias maneiras. Por exemplo, a lei na Alemanha, país longe de ser um bastião da esquerda, não fixa tetos máximos, mas impõe limites a aumentos em função de um índice local de preços, das caraterísticas do imóvel e de uma percentagem máxima de aumento no médio prazo. Em algumas zonas mais críticas, o aumento não pode exceder os 10% da renda de referência, contemplando isenções para propriedades recém-construídas ou colocadas a arrendar pela primeira vez, assim como para imóveis com remodelações significativas (Mietpreisbreme).
A proposta de tetos máximos às rendas é, no entanto, mais ambiciosa. Ela é concebida para um contexto de emergência, como o português, em que é urgente baixar as rendas, pois tem a capacidade de o fazer com eficácia e num curto espaço de tempo. Uma revisão de literatura recente e bastante abrangente, conclui que em 36 dos 41 estudos que avaliaram a relação entre controlo de rendas e o seu preço, as rendas baixaram significativamente após a introdução de medidas deste tipo. Só por isto, já vale a pena considerar seriamente esta opção.
Também são apontados outros benefícios como a maior estabilidade habitacional (pessoas ficam mais tempo nas casas) e o maior rendimento disponível para os inquilinos. No entanto, também são assinalados alguns perigos: possível aumento das rendas não abrangidas pelo controlo de rendas, diminuição da oferta de casas no mercado de arrendamento por não corresponderem às expetativas de retorno dos senhorios e degradação da qualidade dos imóveis pelo facto de os senhorios não estarem disponíveis para fazer renovações.
Num mercado em que quase todo o parque da habitação é privado, estes problemas têm que ser levados a sério. No entanto, os tetos às rendas não são uma medida isolada e funcionarão se forem articulados num programa de habitação inteligente e mais alargado, capaz de enfrentar uma provável ‘greve de senhorios’.
Desde já, é preciso fechar a torneira da procura externa milionária, pondo fim aos vistos gold, ressuscitados por este governo, às borlas fiscais aos residentes não-habituais e nómadas digitais, impondo também uma interdição temporária à aquisição de imóveis por não residentes. Só assim poderemos esperar que a oferta se pare de deslocar para o segmento de luxo. Igualmente, é preciso limitar novos alojamentos locais e hotéis para evitar o desvio de parque habitacional para fins não-residenciais. Isto permitirá também estancar o aumento dos valores dos imóveis, que é decisivo para aqueles que querem adquirir casa; a redução do preço das casas, não só das rendas, não pode ser negligenciada.
Os tetos máximos de rendas podem ser acompanhados por exceções ou nuances para novos imóveis disponibilizados no mercado de arrendamento pela primeira vez, nova construção e remodelações profundas, como na Alemanha, para evitar os perigos referidos. Eles não dispensam também uma lei mais geral de limites a aumentos de rendas, quer no valor, quer no tempo, para promover contratos de mais longa duração e impedir aumentos excessivos, que podem ser indexados à subida dos salários ou da inflação. Pode também revestir-se de maior proteção dos inquilinos, obrigações de requalificação dos imóveis para os senhorios e uma proibição temporária de despejos, para evitar um backlash dos senhorios a este tipo de medidas.
Outras medidas devem ser tomadas atendendo às especificidades do mercado de habitação português, das quais destaco três: o elevado número de devolutos, o parco parque público de habitação e a informalidade. Uma penalização fiscal agressiva das ditas ‘casas vazias’ e a mobilização de imóveis públicos desta natureza deve ter lugar para estimular a sua colocação no mercado de arrendamento – isto é bem mais fácil que construir casas novas. No curto-médio prazo, deve também investir-se numa expansão significativa da habitação pública, sem a qual o poder de intervenção do Estado no mercado se vê bastante reduzido. A melhor forma de garantir que a habitação é disponibilizada a preços acessíveis é ser o próprio Estado a fazê-lo; esta é, aliás, a realidade de muitas cidades de países europeus, como a Áustria e os Países Baixos, insuspeitos de serem ‘socialistas’. Por último, é necessário combater a informalidade: a IGF estima que cerca de 60% dos arrendamentos não são declarados.
Contra os dogmas liberais, o controlo das rendas funciona, é urgente e necessário, mas terá que ser parte de um programa mais alargado, que a esquerda saberá construir e apresentar.
