Numa revisitação da História, afirmou que “a Ucrânia independente é uma criação de Lenine e dos seus camaradas”, responsáveis pelo desmembramento do império russo.
“Na verdade, a Ucrânia deveria chamar-se Ucrânia de Lenin, o seu autor e arquiteto”. Vinda de quem vem, a acusação soa a elogio. Mas convoquemos a História para destrinçar quem é quem.
O desmembramento do império russo foi consequência da sua participação na I Guerra Mundial. Os bolcheviques fizeram parte da minoria que manteve uma oposição internacionalista à guerra imperialista, a par de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na Alemanha, de James Connolly, herói da luta de libertação da Irlanda e outras honrosas exceções.
Lenine e os internacionalistas permaneceram fiéis ao Manifesto de Basileia de 1912, que exortava os operários de todos os países a travar uma luta decidida pela paz, “contrapondo ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado”. E o primeiro dever internacionalista é a luta contra o “seu” próprio imperialismo: “a transformação da atual guerra imperialista em guerra civil é a única palavra de ordem proletária justa nas condições da guerra imperialista entre os países burgueses altamente desenvolvidos”.
Em “A guerra e a social-democracia russa” (Setembro de 1914) Lenine denunciava: “O objetivo da burguesia inglesa e francesa é conquistar as colónias alemãs e arruinar a nação concorrente, que se distingue por um desenvolvimento económico mais rápido. E para este nobre fim as nações “avançadas”, “democráticas”, ajudam o selvagem czarismo a sufocar ainda mais a Polónia, a Ucrânia e a esmagar a revolução na Rússia”.
Com o triunfo da revolução de Outubro de 1917 não foi só por necessidade, mas por convicção, que o poder soviético reconheceu a independência da Finlândia, da Polónia, da Ucrânia e de outras nações agrilhoadas na “prisão dos povos” do defunto império czaristas. Lenine defendeu as independências como um passo indispensável para a emancipação do proletariado desses países face às burguesias que tendiam a liderar a causa nacional, numa polémica notável com outra “águia” do marxismo, Rosa Luxemburgo.
Após o fim da guerra civil contra os “brancos” e da invasão por vários países imperialistas, em 1922, as repúblicas socialistas soviéticas da Rússia, da Ucrânia, da Bielorrússia e da Transcaucásia constituíram a URSS que deu origem a 15 repúblicas independentes em 1991. Foi uma história atribulada: são conhecidos os alertas de Lenine contra o “espírito grão russo” e a brutalidade centralista no tratamento de outras nacionalidades, como a Geórgia.
O estalinismo e o sistema de partido único espezinharam um relacionamento democrático e igualitário entre os povos, mesmo depois da prova de fogo conjunta e da vitória heróica contra a invasão nazi. A política de russificação das diversas repúblicas, prosseguida até aos últimos dias da URSS, é responsável pela criação de maiorias regionais pró-russas como as das “repúblicas populares de Donetsk e Lugansk”, hoje pretexto para a invasão da Ucrânia - um paralelo sinistro com a “questão sudeta”, invocada por Hitler para anexar a Checoslováquia.
Significativamente, é Lenine e não Estaline o alvo das críticas de Putin, ex-KGB e aspirante a “czar de todas as Rússias” que não se coibiu de ameaçar os ucranianos: “Querem ser descomunizados? Estamos dispostos a demonstrar-lhes o que significa realmente descomunizar a Ucrânia”. Aí está a demonstração prática, em menos de 48 horas.
No campeonato da “descomunização”, o mais absurdo é a posição do PCP que não consegue ter uma palavra para condenar a invasão da Ucrânia. Há a NATO, certo, devia ter sido dissolvida pelo menos desde a extinção do Pacto de Varsóvia – aliás nunca devia ter existido, teve o regime fascista de Salazar como um dos fundadores... A NATO não evitou a tragédia que se abate sobre o povo ucraniano. A NATO é o melhor pretexto de Putin, tal como Putin é o pretexto da NATO. Cada vez tenho mais orgulho por defender há décadas “NEM NATO, NEM PACTO DE VARSÓVIA”.
Qualquer confusão entre o regime oligárquico russo e uns resquícios de socialismo ficou desfeita pelas palavras de Putin – um pide é sempre um pide… – e pela ação militar para “descomunizar” a Ucrânia. A esperança hoje mora na resistência civil ucraniana e nos internacionalistas russos que ousam manifestar-se contra a guerra, em plena Praça Pushkin.
Como é, camaradas: ficamos com Lenine ou com o império?