Cabo Delgado: para lá das explicações simplistas

porAlexandre Abreu

20 de abril 2021 - 14:59
PARTILHAR

As explicações mais comuns do conflito em Cabo Delgado não fazem justiça à articulação de motivações e interesses que lhe está subjacente.

Através de Joseph Hanlon, autor de uma sempre bem informada newsletter sobre Moçambique, cheguei a uma publicação acabada de lançar pelo Observatório do Meio Rural, instituto de investigação moçambicano, acerca do conflito em Cabo Delgado. Este estudo, da autoria de João Feijó, procede a uma caracterização do grupo rebelde que nos últimos três anos tem lançado ataques nesta província do norte de Moçambique, a partir de entrevistas com 23 mulheres que foram raptadas pelo grupo e foram libertadas ou conseguiram escapar.

Trata-se de um olhar proporcionado por quem esteve por dentro do grupo, ainda que sob coação, e que é especialmente útil na medida em que colmata um quase total vazio de conhecimento quanto à estratégia, organização e motivações deste grupo rebelde. Afinal, os seus líderes e combatentes não dão entrevistas e não emitem declarações exceto ocasionais proclamações através dos canais de propaganda do Estado Islâmico, ao qual se encontram federados de forma mais ou menos ténue. Isso dificulta muito a compreensão de uma guerrilha extraordinariamente violenta, que pode parecer tanto mais niilista quanto mais desconhecidas são as suas pretensões e objetivos.

A partir das entrevistas com estas vítimas do grupo auto-denominado “al-Shabaab” (designação idêntica à do grupo semelhante mas distinto que opera na Somália e que significa “os jovens”), a imagem que emerge é o de um grupo em que predominam os jovens e adolescentes (por vezes, chegam a ser crianças) e que é bastante heterogéneo em termos de origens geográficas, ainda que com aparente predomínio do grupo étnico local muani. Os líderes são frequentemente estrangeiros (tanzanianos e oriundos de países árabes) e aparentemente mais cumpridores dos preceitos religiosos, em contraste com a maioria dos membros comuns, caracterizados como “mais jovens e materialistas, particularmente ressentidos com os excessos das forças de defesa e segurança, que estão revoltados com a pobreza socioeconómica, e que encontram no grupo dos machababos [corruptela local de al-Shabaab] um escape para expressão da sua revolta”.

Um aspeto especialmente digno de nota destes relatos é o conteúdo das sessões de doutrinação de que são objeto aqueles que são raptados pelo grupo, “durante as quais são exploradas temáticas de exclusão e de injustiça social”, construindo-se “um discurso segundo o qual o grande agressor é o Estado moçambicano, apresentando-se o grupo radical como a protecção contra as injustiças sociais”. Acrescenta o autor que “a promessa messiânica de ordem social, conjugada com a distribuição de benefícios concretos – alimentação, vestuário e protecção – têm um efeito sedutor sobre populações vulneráveis, sobretudo num cenário de violência, de grande precariedade social e de insegurança alimentar”.

Estes relatos reforçam a ideia que é impossível compreender o conflito em Cabo Delgado sem considerar os sentimentos de exclusão e ressentimento que afligem a população desta província, caracterizada pela sua enorme distância à capital, insegurança alimentar e falta de oportunidades económicas. Por outro lado, tudo isto ocorre a par do desenvolvimento nos últimos anos de megaprojetos de extração de recursos naturais (especialmente gás natural e rubis), dos quais as populações retiram poucos ou nenhuns benefícios, e de processos de expropriação de terras promovidos pelo governo moçambicano, que surge aos olhos de muitas populações pobres como o inimigo. Como os relatos também mostram, estes ressentimentos tornam-se especialmente mobilizáveis quando são sentidos coletivamente, de forma horizontal, e quando não se limitam à dimensão económica, combinando-se com o ressentimento face à arbitrariedade e violência das forças de segurança.

Articulados com estas motivações dos protagonistas diretos, temos depois interesses de ordem superior por parte de quem organiza e financia o grupo. À escala global, o Estado Islâmico tem interesse em mostrar atividade por parte de uma das suas filiais locais como prova de vida e estratégia de recrutamento. À escala regional e local, a violência e o conflito criam uma nova (des)ordem política que é economicamente funcional para diferentes partes: por exemplo, criando oportunidades de comércio e um contexto favorável ao tráfico; permitindo aceder à terra e aos seus recursos ou mobilizar trabalho de forma coerciva; ou justificando o recurso a forças militarizadas e mercenárias de segurança privada.

No seio da economia e dos estudos de desenvolvimento, a análise das causas dos conflitos tem nas últimas duas décadas sido dominado pelo debate “greed versus grievances” (ganância versus ressentimentos). Trata-se de um debate polarizado entre dois polos de explicação: o primeiro privilegia a importância das perspetivas de ganho material individual por parte dos combatentes, o segundo sublinha antes os ressentimentos de natureza social, cultural ou religiosa. Relacionado com este, há depois um outro debate quanto ao primado, para explicar os conflitos, das desigualdades verticais (entre indivíduos) ou horizontais (entre grupos).

Acontece que, pelo menos na sua forma extrema, muitos dos contributos para este debate são também excessivamente simplistas, na medida em que assentam em modelos de análise meramente individualistas e que não admitem a articulação de diferentes ordens de causalidade. O caso de Cabo Delgado, de que começamos aos poucos a conhecer os contornos, mostra que a causa dos conflitos é em geral algo de bem mais complexo do que admitem as explicações simplistas. Articula motivações individuais económicas, religiosas e no plano dos ressentimentos com interesses locais e internacionais de diferentes tipos, no contexto de uma estrutura politico-económica que é transformada pelo próprio conflito e em que este último, apesar de toda a violência e destruição ou mesmo por causa delas, é funcional para algumas partes. Tudo isto torna mais difícil contar a história em duas linhas, mas aproxima-nos de uma melhor compreensão do problema.

Artigo publicado em expresso.pt a 15 de abril de 2021

Alexandre Abreu
Sobre o/a autor(a)

Alexandre Abreu

Economista, professor universitário e ativista do Bloco de Esquerda
Termos relacionados: , Cabo Delgado