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Ainda sobre o consumo de drogas e a “cegueira” de Rui Moreira

A criminalização do consumo de drogas como proposta por Rui Moreira e apoiada, contra todo o bom senso, pelo PS no Porto – a criminalização do consumo na via pública – teria como resultado apenas a criminalização das pessoas a quem Rui Moreira falhou pela sua negligência.

Portugal é, sim, um exemplo pioneiro a nível mundial no que toca não só ao enquadramento legal do consumo de drogas, mas a todo o dispositivo “montado” para combater a toxicodependência e as suas consequências (para o consumidor e não só).

Ao contrário do que Rui Moreira quer fazer parecer, a descriminalização do consumo de drogas não foi um mar de rosas, ou uma “irresponsabilidade” coletivamente tolerada. Portugal não passou a ser considerado exemplo mundial repentinamente. Aliás, chegou a contar com a oposição da ONU que, após missão em Portugal, reconheceu o modelo português como bom exemplo no relatório do International Narcotics Control Board, em 2005. A política para as drogas em Portugal foi alvo de enorme escrutínio ao longo da sua implementação. Não só foi, como continua a sê-lo, por exemplo, através dos dados publicados pelo SICAD, mas também através dos relatórios produzidos pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. Contra o preconceito, a evidência.

Uma das evidências do sucesso do modelo português foi a sua capacidade de contenção de uma crise de consumo de heroína refletida também em índices de saúde pública. Entre 2001 (entrada em vigor da lei) e 2002, o número de mortes relacionadas com consumo de droga diminuiu 44%.1 Um espaço de tempo tão curto como este não permite atribuir à entrada em vigor da lei toda a responsabilidade por uma manifesta melhoria nos índices de saúde pública. O que explica os bons resultados é uma combinação entre estratégias de redução de risco e minimização de danos já no terreno desde a década de 90, o robustecer e a reorganização destas estratégias, especialmente a partir de 2001, e a reorientação dos recursos para o combate à toxicodependência e não aos toxicodependentes, para o qual a descriminalização do consumo foi crucial. Numa perspetiva de médio/longo-prazo, em 2003, registaram-se em Portugal 152 mortes relacionadas com consumo de droga; em 2021, registaram-se 63.2

Ao contrário do que Rui Moreira quer fazer parecer, a descriminalização não resultou nem na normalização e aumento do consumo (Portugal passou de um cenário de crise para tendências de consumo em linha com a UE), nem no abandono das pessoas toxicodependentes a si próprias. Pelo contrário, a política portuguesa passou a caracterizar-se por uma distribuição equilibrada entre combate à toxicodependência, através, por exemplo, das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT), e das estratégias de redução de risco e minimização de danos, e o combate ao tráfico, desobstruindo o sistema judicial ao remeter os consumidores de drogas para o domínio da saúde. Em 2019, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência reportava que a despesa pública com substâncias ilícitas, em Portugal, se distribuía entre redução da oferta (combate ao tráfico) – 48% - e redução da procura (combate à toxicodependência) – 52%.3 Onde está o desequilíbrio no sistema apontado por Rui Moreira como uma das causas para o “flagelo” do consumo na via pública? Poderíamos (isso sim) falar de respostas insuficientes, e aí seria irónico referir que apesar de as salas de consumo assistido estarem previstas na lei desde 2001 e de Rui Moreira ser Presidente da Câmara Municipal do Porto há dez anos, a sala de consumo assistido no Porto tem apenas três meses.

Também contrariamente ao que Rui Moreira quer fazer parecer, mesmo que não o afirme convictamente (uma vez que é mentira), o consumo de drogas não passou a ser legal em Portugal, simplesmente não é crime. A criminalização encerrava consumidores em prisões, o sistema atual identifica-os, avalia os seus consumos e remete-os para respostas sociais e de saúde que se adequem ao seu perfil de consumo. Poderíamos tecer críticas ao atual sistema e não faltam pessoas que consomem drogas com voz própria para o fazer, mas, por agora, importa responder ao ataque de Rui Moreira e dizer, por exemplo, que 86% dos consumidores identificados e encaminhados para as CDT não são toxicodependentes.4

A Rui Moreira não interessam os indicadores utilizados para medir o desempenho da política para as drogas. No Público, pergunta-nos como explicamos este sucesso aos “concidadãos que vivem atormentados pelo fenómeno da toxicodependência, ao ponto de as suas crianças terem de conviver com seringas usadas no recinto da escola”.5 Em geral, em Portugal, 75% das pessoas reconhecem o consumo de droga como um problema na sua comunidade – um valor próximo da média da UE (78%).6 Mas atentemos na caracterização deste problema. De acordo com o Eurobarómetro, Portugal é dos países da UE em que menos pessoas reconhecem um aumento nos problemas relacionados com drogas.7 Entre as pessoas que afirmaram que as drogas são um problema, 37% referem o consumo de “drogas duras”8, face a 53% na UE; 24% referem a violência relacionada com o consumo, face a 54% na UE; 20% referem traficantes e consumidores como intimidando a população local, face a 42% na UE. O modelo português não é ainda hegemónico na UE, apesar de se registarem convergências. Onde reside, então, o tormento das drogas que Rui Moreira identifica no Público, associando-o ao falhanço do modelo português?

O aumento da visibilidade do consumo de droga no Porto (o que é bem diferente do aumento do consumo) não resulta de uma política para as drogas errada. Resulta, sim, como bem explicou o José Soeiro no seu texto no Expresso, de um “fenómeno instalado nos bairros de Pinheiro Torres e da Pasteleira, na sequência da demolição irresponsável do Aleixo”. 9 A eliminação dos espaços de consumo não combate o consumo, tal como a repressão das pessoas que consomem drogas não combate a toxicodependência. A criminalização do consumo de drogas como proposta por Rui Moreira e apoiada, contra todo o bom senso, pelo PS no Porto – a criminalização do consumo na via pública – teria como resultado apenas a criminalização das pessoas a quem Rui Moreira falhou pela sua negligência, ao longo dos anos, no que toca a medidas de redução de riscos e minimização de danos e não só, como veremos abaixo.

Não é de somenos importância referir que a criminalização do consumo de drogas na via pública significaria uma enorme injustiça social. Os consumos de drogas publicamente visíveis – a que Rui Moreira associa as seringas - não são quaisquer consumos, mas sim aqueles que se relacionam em grande medida com outros problemas sociais. Não será por acaso que o problema mais frequentemente associado ao consumo de droga em Portugal é a pobreza e o desemprego (57%).10 Vejamos, por exemplo, como segundo o IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas (2016-2017)11, enquanto, em geral, o consumo de drogas é mais comum em períodos de férias, o consumo de heroína é mais comum em períodos de desemprego. Além disso, o consumo de heroína é mais representativo entre “operários” do que, por exemplo, os cogumelos alucinogénios que predominam entre as classes socioprofissionais com mais rendimento. Vejamos ainda como os cogumelos tendem a ser obtidos em casa de conhecidos, ao contrário da heroína cuja obtenção se faz na rua em quase 50% dos casos. Estes são alguns dados que nos permitem perceber como a criminalização do consumo (e da posse) na via pública acabaria por criminalizar tipos de consumo específicos relacionados com assimetrias sociais. Parafraseando o texto do José Soeiro, só os “drogados de rua” seriam criminalizados. Os “drogados” das “festas chiques terão sempre escape”.

O que cria o “flagelo” do consumo de drogas na via pública não é a descriminalização do consumo, mas sim a falta de políticas sociais e de saúde capazes de combater as consequências de consumos resultantes de situações de dependência, bem como as causas da dependência e a sua relação com determinados padrões de consumo (substância, local e meio de obtenção, etc.) A estratégia de Rui Moreira consiste em contrariar toda a evidência científica que ao longo dos anos foi dando força ao modelo português e capitalizar com uma “crise” de consumo público que ele próprio criou, criando uma nova narrativa sobre toxicodependência, com um objetivo último: a higienização social da cidade para criar o Porto para inglês ver, nem que para isso tenha que “limpar” as ruas com recurso à polícia e à prisão. É o regresso ao passado.

Notas:

1 SICAD, A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, Relatório Anual – 2003, disponível em https://www.sicad.pt/BK/Publicacoes/Lists/SICAD_PUBLICACOES/Attachments/11/vol1_2003.pdf

2 SICAD, A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, Relatório Anual – 2021, disponível em https://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/detalhe.aspx?itemId=178&lista=SICAD_PUBLICACOES&bkUrl=BK/Publicacoes/

3 Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. (2019). Portugal Country Drug Report 2019. http://www.emcdda.europa.eu/countries/drug-reports/2019/portugal/public-expenditure_en

4 SICAD, A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, Relatório Anual – 2021, disponível em https://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/detalhe.aspx?itemId=178&lista=SICAD_PUBLICACOES

6 SICAD, A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, Relatório Anual – 2021, disponível em https://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/detalhe.aspx?itemId=178&lista=SICAD_PUBLICACOES

7 Flash Eurobarometer 493, Impact of drugs on communities, disponível em https://www.sicad.pt/BK/Documents/2022/Eurobarometer-Impact_drugs_communities_2021_en.pdf

8 Na verdade, uma designação ultrapassada. Uma vez que mais do que a natureza da substância consumida, o que caracteriza a dependência é a relação estabelecida entre o consumidor e a substância. Mantenho a designação apenas pela associação a drogas injetáveis, uma vez que a imagem das seringas é um dos elementos salientados por Rui Moreira.

10 Flash Eurobarometer 493, Impact of drugs on communities, disponível em https://www.sicad.pt/BK/Documents/2022/Eurobarometer-Impact_drugs_communities_2021_en.pdf

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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