Rui Moreira propôs esta semana, na Câmara do Porto, uma recomendação ao governo para tomar “todas as iniciativas, com carácter de urgência, nomeadamente de natureza legislativa, que permitam o agravamento da criminalização do tráfico de estupefacientes e a criminalização do seu consumo na via pública”. Os vereadores do PS decidiram votar a favor da proposta. Tiago Barbosa Ribeiro e Rosário Gamboa, que são também deputados do PS no Parlamento, decidiram recomendar ao Governo que mude a lei portuguesa, embora eles próprios pudessem tomar a iniciativa, por serem legisladores.
A diligência de Moreira seria a resposta da Câmara ao fenómeno instalado nos bairros de Pinheiro Torres e da Pasteleira, na sequência da demolição irresponsável do Aleixo. Ora, se há coisa que aquela demolição provou é que não é por expulsar pessoas de um território e ameaçar com prisão os “drogados” (os de rua, claro, porque os das festas chiques terão sempre escape) que se resolvem problemas sociais.
A proposta de Moreira está errada em tudo. Os pressupostos contrariam o conhecimento acumulado. É omissa, porque esconde que a origem do problema está em grande medida em opções municipais, nomeadamente relacionadas com o Aleixo. É superficial e enganadora, porque ficciona que o problema da Pasteleira e de Pinheiro Torres se resolveria magicamente com o regresso à lei do século passado. É comprovadamente ineficaz, porque quando Portugal criminalizava o consumo este era mais problemático e eram maiores os problemas de segurança e de saúde públicas. É uma tática para Moreira se desresponsabilizar perante a sua própria incapacidade, fingindo que o problema é a lei e não as políticas públicas que faltam, desde logo municipais. E é uma proposta equívoca: o tráfico nunca deixou de ser crime em Portugal (aliás, com pena que pode ir até aos 15 anos) e consta das prioridades de prevenção e investigação criminal (artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 55/2020); e o consumo na rua é hoje proibido e punível por lei, seja ocasional ou dependente.
Para que serve, então, o disparo de Moreira? Do ponto de vista prático, para nada. É um puro statement político a favor do regresso ao modelo da criminalização. Só que esse modelo já foi experimentado.
Durante décadas, Portugal tratou o problema da droga como uma questão de polícia e de prisão. Os resultados foram um fiasco. A política de criminalização do consumo não era instrumento de combate ao tráfico nem de garantia da segurança pública. Onde se expulsava e se prendia de um lado, lotando as prisões com toxicodependentes, fazia-se o problema surgir noutro, deslocando o consumo para outros espaços da cidade ou para as prisões. Além disso, canalizar as forças policiais para a repressão dos utilizadores desviava a ação policial do combate aos traficantes e impedia uma abordagem às vítimas do consumo centrada na saúde, na redução de riscos, na minimização de danos e no encaminhamento para mecanismos de substituição e tratamento.
A mudança de paradigma aconteceu em 2000. Do ponto de vista legal, a grande transformação operada foi precisamente a descriminalização do consumo. Este passou a ser tratado como um problema de saúde pública, deixando à polícia o fenómeno do tráfico. O modelo português foi um exemplo mundial, ainda hoje elogiado e tomado como referência.
Os resultados foram impressionantes. Desde então, a população afetada pelo fenómeno decresceu para menos de um terço, diminuiu-se na mesma proporção os consumos problemáticos, caiu a pique a infeção por HIV, hepatite ou tuberculose relacionada com drogas injetáveis, as mortes por overdose são sete vezes menos do que eram. A criminalidade e o sentimento de insegurança foram também drasticamente reduzidos. Os problemas ficaram todos resolvidos? Não. Mas uma coisa é certa: os que defendiam o modelo da criminalização do consumo foram derrotados pelos factos.
Proteger os espaços escolares, retirar o consumo da rua e reduzir os riscos que lhe estão associados não se faz exibindo a autoridade do estado penal junto dos consumidores ou com atoardas inconsistentes com o pressuposto de que os toxicodependentes “deviam ser todos presos”. É tarefa paralela ao combate ao tráfico e consegue-se com presença nos territórios e reforçando a capacidade de resposta da saúde pública, designadamente através das salas de consumo assistido ou vigiado e da presença de mediadores que conduzam as pessoas para esses espaços.
A sala de consumo que existe no Porto só tem três meses, mas já acompanhou mais de 600 utentes. Ela devia ser valorizada, ampliada e multiplicada, ter uma intervenção multidisciplinar reforçada, em vez de ser atropelada com a ideia da criminalização dos consumos que introduziria, entre a equipa de intervenção e os consumidores, o fantasma do encaminhamento pela polícia.
Que Moreira queira fazer essa campanha política percebe-se. Que o PS, partido que, com o Bloco, esteve profundamente comprometido com a mudança de paradigma que ocorreu em Portugal, o tenha acompanhado, votando favoravelmente a proposta de Moreira, é chocante. E, na minha opinião, uma afronta a toda a tradição de um partido que, com outros, foi agente dessa transformação, de Guterres a Sampaio.
Artigo publicado em expresso.pt a 18 de janeiro de 2023
