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Ainda não caiu o 155

Será que quem ganhou as eleições e tem maioria está proibido de exercer o poder que a própria Constituição monárquica outorga?

1 As urnas falaram. As eleições para o parlamento da Catalunha ditaram uma maioria republicana independentista, confirmaram as forças que promoveram o referendo de 1 de outubro. Esse é um resultado extraordinário, assestando um golpe profundo no PP de Rajoy. Resultado tanto mais extraordinário quando conseguido sob a perseguição policial e judiciária do Reino de Espanha aos líderes e candidatos dos partidos republicanos, com censura imposta nos media da nação, desde a televisão catalã aos cartazes autorizados. Liberdade foi o slogan constante do bloco de apoio ao governo legítimo e expulso por Rajoy por uma lei de exceção suspendendo o Estatuto da Autonomia, com a cumplicidade, aliás de Sánchez (PSOE) e Rivera (C"S). A repressão seletiva que se seguiu ao ataque policial às pessoas que pacificamente votavam no referendo de 1 de outubro, não intimidou autarcas, associativos, ativistas políticos, sindicalistas e todos aqueles que, para além dos partidos, fizeram a rede da resistência. A campanha anticatalã foi tremenda com chantagem económica, ameaças da confederação dos patrões da própria Catalunha, histeria constante na TVE, utilização da Comissão Europeia para cercar qualquer intenção de Barcelona. Rajoy tentou tornar as eleições numa espécie de plebiscito à unidade espanhola e uma garantia da blindagem da monarquia e da Constituição de 78. E perdeu, o campo monárquico e constitucionalista regista 57 mandatos contra 70 dos republicanos. Qualquer que seja a opinião que tenhamos sobre os componentes partidários e pessoais da maioria republicana, ninguém pode contestar que esta é uma vitória do movimento popular e não é menos popular por ser nacionalista.

2 As consequências em Espanha são importantes: o PP cede campo ao seu parceiro de direita, Ciudadanos (C"S), e tem maior dificuldade em fechar acordo no orçamento com o PNV, partido nacionalista basco. O PP entrincheira-se ainda mais no impedimento de qualquer revisão da Constituição que permita o referendo legal e negociado da independência com a Generalitat, ceder aí seria assumir a derrota e daria origem a uma crise de regime. O governo minoritário de Rajoy, existindo graças à viabilização C"S e PSOE, está num pântano sendo incerto o seu termo. Rajoy não terá maioria, em caso de eleições antecipadas para as Cortes com esta dinâmica do C"S. Estes não querem continuar o frete ao PP mas não têm garantia de liderar um futuro governo na Moncloa. O PSOE não tem hipótese de chegar à maioria e não quer aliar-se ao Podemos e os C"S dificilmente darão para o peditório de Sánchez. Objetivamente, com o "procés" catalão o Podemos (e a Izquierda Unida) deixaram ainda mais longe de perspetiva a aliança que reclamam ao PSOE. Aliás, essa esquerda estatal e catalã não republicana está a ser penalizada. Era previsível que a subestimação da questão nacional limitasse o seu espaço político. O pior é que agravou várias linhas de fratura interna. A instabilidade e a incerteza vão dominar o quadro político espanhol, onde não é desprezível considerar que o Rei Filipe sai chamuscado desta operação plebiscitária.

3 À anormalidade das eleições autonómicas sucede a anormalidade da investidura de "governo". O famigerado artigo 155 da Constituição que permite ao governo de Madrid controlar a administração da Catalunha está ainda em vigor. Vai ser levantado? Não se afigura fácil com Rajoy a exigir ao governo legítimo da Catalunha que abdique da independência, não apenas da declaração unilateral da independência, que essa foi relativizada para concorrer e ganhar as eleições, mas da própria ideia da independência como sediciosa!

Mesmo a tomada de posse dos deputados e deputadas está envolta no mistério. Será que PP,PSOE,C"S não fazem rapidamente uma amnistia geral ou vão comprazer-se em ver exilados e presos expulsos do parlamento e impedidos de formar governo. Será que quem ganhou as eleições e tem maioria está proibido de exercer o poder que a própria Constituição monárquica outorga? O fator Catalunha vai continuar a agitar o governo espanholista, incapaz de resolver outra coisa senão o desmando e a violência. Se o 155 continua e Rajoy e apaniguados vão montar a ficção de que a situação de políticos exilados e presos e muitos outros que ainda virão a ser presos, assim se percebe pelas fugas ao segredo de justiça espanhola, não é nada com eles, é uma exclusiva pendência dos tribunais, falando hipocritamente da separação de poderes, então esperem pela resposta popular. A consequência racional de tal via é a supressão da Autonomia.

4 Não faltam derrotados em Portugal com a expressão da vontade popular catalã. Dos que querem dizer a milhões de pessoas que elas são uma falácia na democracia espanhola. Dos que acham que a democracia pode prejudicar o sistema financeiro e os bancos espanhóis que por cá mandam. Dos que são politicamente subservientes à Monarquia dos Borbón. Esses, entre altas figuras do estado, comentadores, empresários de gabarito, são por assim dizer parciais e duros, aliados da pior direita espanholista. Mais refinados são aqueles, que tendo voz nos media, se permitem ralhar com os republicanos porque não negociaram, porque eram delirantes na forma como engendraram o referendo de 1 de outubro, porque Puigdemont, um político liberal que não faz parte das minhas preferências, primeiro era uma figura de almanaque e depois um cobarde, um foragido na Bélgica sem dimensão de combatente de coisa alguma. Há 24 horas previam o fim do quixotismo. Não sei se foi impressão ou a TVI foi ao longo da campanha completamente espanholista? Por que será? Essa gente dúbia escamoteia que ao longo dos últimos vinte anos o Reino de Espanha frustrou todo o diálogo, e há mais de sete anos anulou uma proposta de Estatuto da Autonomia, votada legalmente pelo povo. Essa gente pedante que escarnece do direito à autodeterminação, proclama o artesanalismo dos republicanos e o seu improviso irresponsável, recusa-se a ver a coisa mais óbvia que qualquer pessoa pouco letrada pode ver: Espanha fabricou os independentistas já que há vinte anos eles eram irrelevantes no território. É o que chamam agora "separatistas".

5 Cabe à esquerda progressista em Portugal, assim o julgo, ser solidária com a vontade legítima do povo catalão. A questão da independência é um assunto da responsabilidade cidadã dos catalães, não está no nosso radar. Mas seguramente o combate à tortura política que o governo de Rajoy executa sobre a generalidade dos catalães, independentistas, constitucionalistas e neutros nesta contenda, mobiliza uma larga frente de democratas. Não nos move nenhuma hostilidade ao povo irmão de Espanha, simplesmente a ação das suas instituições é uma indignidade face às mais elementares normas das Nações Unidas.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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