Na conferência de imprensa online para apresentar a proposta de criação de um fundo europeu de resposta à crise, Marisa Matias começou por considerar que a reunião do Eurogrupo que apresentou propostas para a crise pandémica “foi um fracasso” porque trouxe “mais um pacote de endividamento” e “com mais austeridade”.
A proposta do Bloco é muito diferente na sua natureza. É uma proposta de fundo de recuperação económica sem austeridade e que pode financiar “cinco a sete vezes mais do que o mecanismo de estabilidade” e que procura ser realista, ou seja, é feita “dentro de todas as capacidades disponíveis e sem alterações da legislação europeia vigente.
Isto mesmo detalhou José Gusmão, que se focou nos seus “três objetivos fundamentais”. O primeiro é que possa ser implementada de forma imediata. Para isso foi feita de forma a cumprir o quadro legal da União Europeia, mesmo os aspetos com os quais “o Bloco não está de acordo”. Por isso, não é financiamento monetário “do ponto de vista formal”, não implica transferências entre Estados e é um “mecanismo multilateral”, ou seja “todos os Estados podem aceder” em igualdade.
Em segundo lugar, não aumenta os encargos do Estado português com o serviço da dívida porque a dívida a ser emitida, sê-lo-á a taxas “próximas do zero”.
Em terceiro lugar, estes títulos, “porque têm uma maturidade de 80 anos”, “não vão afetar nenhuma das decisões financeiras fundamentais do Estado português durante os próximos anos”. Para além disso, “não devem ser contabilizados para o cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento”. Para o Bloco, este “deve ser revogado o mais cedo possível, mas enquanto isso não acontecer defendemos que esta dívida não seja contabilizada”, o que significa que “não obrigará a medidas de austeridade”.
José Gusmão acrescentou ainda que este fundo ultrapassaria as limitações do que foi aprovado no Eurogrupo, cujos fundos “se limitam às consequências sanitárias, ao apoio ao desemprego e empréstimos ao setor privado”. A proposta do Bloco é de “apoiar respostas públicas à crise que podem não ter que ver com a crise sanitárias”, que são “medidas contra-cíclicas” que os Estados-membros podem escolher de acordo com o perfil de especialização da sua economia.
Leia aqui na íntegra a proposta:
Para um Fundo de Recuperação europeu, concretizável e sem ameaça de austeridade
As decisões tomadas pelo Eurogrupo limitaram-se a um pacote de instrumentos de dívida, alguns dos quais resultam de iniciativas já conhecidas da Comissão, aos quais veio somar-se o recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade. Este mecanismo pratica atualmente uma taxa de juro (0,76) mais elevada que a da mais recente emissão pelo Estado Português de obrigações do Tesouro a sete anos.
Mesmo que essa taxa seja reduzida para efeitos desta linha de crédito (o que não foi anunciado), a vantagem da emissão de obrigações do Tesouro ainda é maior atualmente, porque uma parte substancial destas obrigações serão adquiridas ao abrigo do programa de compra de títulos do Banco Central Europeu. E 90% dos ganhos obtidos com os juros dessas obrigações ficam no Banco de Portugal e voltam ao Estado, através dos dividendos correspondentes.
Finalmente, o financiamento obtido através do Estado não tem restrições quanto à sua utilização, não causa qualquer dano reputacional (ao contrário do recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade) e é consideravelmente mais robusto. O limite de compras de obrigações do Tesouro português no programa do Banco Central Europeu (só no programa de 750 mil milhões) é de 14,2 mil milhões, de acordo com a chave de capital do BCE. Ou seja, mais do triplo do limite do Mecanismo Europeu de Estabilidade. E esta não é a capacidade total do BCE, que, de resto, ainda admitiu desviar-se daquela chave.
É por estas razões que o Ministério das Finanças português já assegurou que não tem planos de recorrer ao mecanismo proposto pelo presidente do Eurogrupo…
Além destes instrumentos ineficazes ou insuficientes, a reunião do Eurogrupo praticamente enterrou a proposta dos Eurobonds, que é mencionada de forma críptica na categoria de “instrumentos financeiros inovadores”. É evidente, em todo o caso, que essa proposta só seria útil se não contribuísse para a acumulação de montantes de dívida insuportáveis na Zona Euro.
Deve ser sublinhada a profunda hipocrisia da Comissão Europeia e do governo alemão que têm produzido múltiplas declarações públicas em nome da solidariedade mas opuseram-se a todas as soluções que não as que constavam das suas propostas iniciais. A indignação com as declarações públicas inaceitáveis do ministro das Finanças holandês não deve servir para ofuscar o facto de a Alemanha ter mais uma vez liderado a oposição a qualquer tipo de resposta solidária na União Europeia, com o apoio da Comissão presidida por Ursula von der Leyen.
A ideia de que os instrumentos aprovados não implicam a imposição de políticas de austeridade é uma fraude absoluta. O próprio o documento do Eurogrupo já faz referência ao cumprimento das regras do PEC, o que significa que o corolário de uma resposta europeia que assente na acumulação de dívida será a pressão para que os Estados implementem políticas de austeridade logo a seguir.
A única referência das conclusões da reunião do Eurogrupo que poderia abrir caminho a uma resposta económica à altura da crise é a um Fundo de Recuperação para o financiamento de políticas contracíclicas. Porém, estão por responder as questões essenciais: qual a dimensão desse fundo, como será financiado, como será distribuído e se haverá condicionalidade associada.
A presente proposta do Bloco de Esquerda visa responder a essas questões, procurando explorar o único instrumento eventualmente aceitável que está hoje em cima da mesa, o Fundo de Recuperação.
1. A condicionalidade - que significa um memorando de ajustamento - deve ser sempre excluída. Pelo contrário, a resposta à crise deve visar a recuperação económica. É absurdo criar mecanismos financeiros que apoiem os Estados se depois lhes são impostas medidas recessivas que prolongam o que pode ser uma crise temporária.
2. A dimensão do Fundo aqui proposto está diretamente associada ao impacto da recessão. O montante a disponibilizar deve ser o necessário para repor em 2021 o PIB real da Zona Euro nos níveis de 2019, incluindo um crescimento real de 3%. O montante do fundo será calculado com esse objetivo. Para a estimativa mínima da quebra do PIB, tomamos o valor médio do multiplicador orçamental estimado pelo FMI no estudo de Blanchard e Leigh (1,1) e a fórmula da OCDE (2% de quebra do PIB por mês de isolamento social) para um mínimo de dois meses. Assim, o fundo deve ser imediatamente dotado de uma capacidade de pelo menos 6,3% do PIB da Zona Euro, ou seja, cerca de 750 mil milhões. Uma vez conhecidos os números do PIB da Zona Euro, o Fundo deverá ser reforçado em 120 mil milhões por ponto percentual de quebra do PIB acima dos 4%, ou seja, poderá atingir 1,47 biliões para uma quebra do PIB de 10%.
3. O financiamento do Fundo deve ser feito através de obrigações emitidas pelo próprio Fundo (se tiver existência formal) ou pelo Banco Europeu de Investimento. Em qualquer dos casos, as obrigações são integralmente adquiridas pelo Banco Central Europeu. Os títulos terão uma taxa de 0,05% e uma maturidade de 80 anos.
4. Este valor deve ser distribuído pelos Estados-membros da Zona Euro/União Europeia de acordo com a fórmula de distribuição da coesão, como instrumento associado ao Orçamento Comunitário. Cada Estado-membro ficará responsável pelo reembolso do montante de obrigações correspondente ao seu próprio financiamento (ou aplicando a chave do BCE).
Consideramos que a atual crise, como a anterior, confirmou a desadequação das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, pelo que a suspensão do PEC deverá continuar, até ser possível a sua revogação. Em qualquer caso, a dívida contraída ao abrigo do Fundo de Recuperação não será considerada para efeitos do cumprimento das metas estabelecidas pelo PEC, mesmo que a suspensão do mesmo seja levantada.
O Fundo de Recuperação Económica aqui proposto é, formalmente, um instrumento de dívida. No entanto, as características desta dívida são radicalmente diferentes das da dívida gerada sob os instrumentos até agora acordados. O juro quase-zero permite evitar um agravamento contraproducente no serviço de dívida dos países afetados. Por outro lado, a maturidade longa permite não apenas deslocar a amortização para longe de qualquer horizonte de decisão relevante de Estados ou investidores, mas também, o que é mais importante, assegurar a desvalorização do principal no curso do tempo, o que corresponde, de facto (mas não de direito, o que faz diferença), a uma monetização parcial da dívida pelo BCE, tornando este Fundo num híbrido de dívida e financiamento monetário . Com uma inflação anual média de 1,5% até à maturidade, o principal desvalorizaria cerca de 70%.
Finalmente, um pacote de financiamento desta natureza reduzirá a pressão sobre o financiamento de todos os Estados-membros, contribuindo, em conjunto com a atuação do BCE, para reduzir e fazer convergir os spreads com que os Estados se financiam.
Respondendo aos apelos do BCE no sentido de uma resposta orçamental determinada, o Fundo permitiria melhorar as condições e a eficácia das medidas de política monetária recentemente anunciadas.
Sem prejuízo da posição crítica do Bloco sobre os vários constrangimentos legais e tratados que definem a atuação de instituições nacionais e europeias, incluindo as do BCE, esta proposta tem uma vantagem política: a de ser concretizável no quadro legal existente. Trata-se de uma proposta de financiamento multilateral e voluntário, disponível para todos os Estados-membros, sem transferências diretas (ou indiretas) entre Estados-membros e em que a emissão de moeda tem como contrapartida a transferência de um ativo para o balanço do Banco Central. Não existe sequer partilha de risco entre Estados porque os títulos serão detidos pelo BCE.
A crise económica provocada pela pandemia da Covid-19 vai ser aguda, pelo que não é aceitável que as decisões da UE contribuam para que degenere numa recessão prolongada. Será possível retomar em pouco tempo os níveis de atividade económica anteriores à crise, desde que haja uma resposta imediata e determinada das instituições europeias e condições para que os Estados-membros possam traduzi-la em políticas concretas, sem receio de uma subsequente nova vaga de austeridade.
Se esta cooperação não existir, a União Europeia terá deixado cada país entregue a si próprio.