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Reforma dos Cuidados de Saúde: e agora?

O Senado aprovou a sua lei dos serviços de saúde às primeiras horas da véspera de Natal. O líder da maioria no Senado, o senador Harry Reid, teve de fazer concessões substanciais para garantir os votos dos senadores indecisos, tais como Ben Nelson e Joe Lieberman. Reid sacrificou a opção pública [que constava na lei aprovada pela Câmara de Representantes] para manter o senador Lieberman entre as suas hostes, e aumentou as restrições da lei ao aborto de modo a tranquilizar o senador Nelson.

Em seguida, os representantes da Câmara e do Senado vão fundir as suas respectivas leis no âmbito de um comité conjunto, criando uma única peça legislativa que ambas votarão.

Se a lei do comité conjunto for aprovada pelas duas câmaras, será enviada de seguida ao gabinete presidencial para ser assinada para promulgação. Todo este processo poderá estar concluído até finais de Janeiro.

Apesar das concessões impostas pelo Senado, ainda há muito na nova lei que os progressistas vêem com agrado. Kevin Drum, da revista Mother Jones, listou alguns dos atributos positivos:

- As companhias de seguros têm de aceitar todos os novos beneficiários; não podem recusar ninguém em função de uma situação preexistente ou excluí-lo se entretanto adoecer.

- Tabelas de preços: em termos gerais de tratamentos, todas as pessoas terão de pagar preços idênticos pelas apólices de seguro.

- Mandato individual, que estipula que toda a gente tem de ter seguro de saúde. (Lembram-se como todos insistimos que isto era um elemento positivo - quando John Edwards e Hillary Clinton fizeram campanha sobre este tema durante as primárias?)

Para os progressistas, um mandato faria baixar os custos e a partilha dos riscos seria mais equitativa. Contudo, os progressistas aperceberam-se de que não havendo uma opção pública, as pessoas serão forçadas a comprar às companhias de seguros produtos duvidosos.

- Uma forma de expandir significativamente o Medicaid.

- Subsídios para trabalhadores com salários baixos e médios ,de modo a permitir manter os prémios num valor sempre abaixo de 10% do vencimento.

- Limites dos custos das urgências para pacientes de baixos rendimentos e que não tenham seguro de saúde.

- Uma vasta gama de medidas de contenção de custos.

- Uma receita vinculada para suportar todos estes gastos.

A versão da lei de cuidados de saúde da Câmara de Representantes prevê uma opção pública. Em teoria a opção poderia ser incluída novamente na conferência conjunta, mas mesmo os mais optimistas dos progressistas perderam a esperança de atingir esse objectivo.

Se a opção pública se erguesse das cinzas, o senador Liberman poderia obstruir o Relatório da conferência, e ninguém duvida que o faria.

Por isso, independentemente do grau de firmeza e de habilidade da presidente da Câmara de Representantes, a deputada democrata Nancy Pelosi, não vai haver muita margem de manobra na conferência conjunta. De uma maneira ou de outra, Pelosi deve conseguir fazer aprovar tudo o que sair dali. Reid ainda tem a Espada de Dâmocles pendurada sobre a cabeça.

Isto não quer dizer que tudo esteja lavrado em pedra, porém J. Lester Feder, da revista The Nation, listou o que foi deixado para ser trabalhado na conferência.

Feder diz que as três grandes áreas a ser discutidas serão: capacidade de pagar, capacidade de fazer cumprir a lei e financiamento. Comparada com a lei da Câmara, a versão do Senado oferece subsídios maiores para os seguros, mas protecção mais fraca contra custos que os utentes não possam pagar.

As faixas de idade são outra questão-chave em relação à capacidade de suportar a despesa; a lei da Câmara permite às seguradoras cobrar aos idosos o dobro pela cobertura; a do Senado permite um custo três vezes superior.

A lei da Câmara cria um sistema de seguro nacional, de modo a provocar a baixa dos custos, em oposição à lei do Senado que entende criar sistemas ao nível estadual.

Quanto menor o sistema, menos capacidade tem de conduzir à redução de custos, o que significa que os progressistas (e esperemos também os conservadores fiscalistas) estão a fazer forte lóbi pela adopção da versão nacional.

Quanto à capacidade de fazer cumprir a lei, Feder põe de sobreaviso os progressistas para terem em conta uma aparente provisão menor na lei do Senado que efectivamente destrói a impossibilidade de recusa de cobertura de pessoas com uma condição de saúde preexistente. Ao contrário da Câmara, o Senado votou de modo a permitir que as seguradoras possam oferecer "descontos" a clientes por "boa saúde". Isto poderá querer dizer que pessoas com situações que vão da gravidez à sida poder-se-ão ver na contingência de pagar mais pela sua cobertura do que os utentes mais saudáveis.

O financiamento será seguramente uma questão fortemente contestada na conferência. A Câmara quer pagar a reforma taxando os ricos. O Senado quer taxar os chamados planos de seguro "Cadillac". Actualmente, aqueles que dispõem de um seguro de saúde pago pelos seus empregadores não têm de pagar impostos sobre o valor da cobertura, o que aconteceria se recebessem essa verba em dinheiro. A lei do Senado prevê taxar o valor da cobertura do seguro a partir de um certo plafond.

Mark Schmitt, do American Prospect, concluiu que a lei poderia ser melhorada ligeiramente na conferência acrescentando o mandato do empregador da Lei da Câmara ou melhorando o financiamento; "mas tudo deverá ser esclarecido com o 59º e 60º senadores mais liberais". O seu colega Paul Waldman é mais optimista sobre as possibilidades de melhorar a lei na conferência. O acesso ao aborto e a opção pública estão gravadas na pedra, mas o comité da conferência ainda tem poder para moldar uma possível expansão do Medicaid (a Câmara é mais generosa que o Senado), o prazo para a implementação (quanto mais cedo melhor para os progressistas), a cobertura para imigrantes e outras questões quentes.

Eu prevejo que a abolição da obstrução parlamentar (filibuster) será a grande causa progressista para 2010. A base liberal de Obama tem visto tantas das suas mais profundas esperanças destruídas por um Senado onde sessenta votos são os novos cinquenta1. Se os democratas quiserem manter no redil a turba que grita "matem a lei", têm de canalizar a raiva e a frustração numa direcção construtiva. O senador Tom Harkin propõe uma lei simbólica para acabar com a obstrução. É evidente que não vai passar: se Reid não consegue vencer o boicote sem comprometer a reforma dos cuidados de saúde, não há maneira de aprovar uma lei para abolir definitivamente a obstrução. Seria vítima de obstrução! Dito isto, a lei de Harkin é um gesto simbólico importante e uma oportunidade para galvanizar o apoio a uma reforma estrutural do Senado.

30 Dezembro de 2009

Publicado originalmente em The Media Consortium.

Tradução de José Luís Pissarro

1 Cinquenta deputados são exactamente a metade dos cem senadores; sessenta é o número necessário para impedir que a oposição minoritária possa aplicar a obstrução (filibuster), de forma a adiar indefinidamente a aprovação de uma lei.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista, The Nation
(...)

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