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EUA-América Latina: Mais continuidade que mudanças

A pior crise económica desde a Grande Depressão dos anos 30, uma forte batalha legislativa pela reforma do sistema de saúde e as duas guerras na Ásia herdadas de seu antecessor, George W. Bush, deixaram pouco tempo a Obama para ocupar-se das relações com os vizinhos ao sul da sua fronteira, após ter iniciado a sua presidência no dia 20 de Janeiro de 2009.

Várias de suas nomeações mais importantes, como as de Arturo Valenzuela para subsecretário de Assuntos do Hemisfério Ocidental e Thomas Shannon para embaixador no Brasil, demoraram meses para serem confirmadas porque senadores republicanos pressionavam para bloquear a volta ao poder do presidente de Honduras Manuel Zelaya. A ala mais direitista do opositor Partido Republicano vê o mandatário institucional hondurenho, deposto em 28 de Junho por um golpe cívico-militar, como aliado do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um adversário frontal das políticas de Washington.

Embora Obama tenha tido um começo promissor quando prometeu buscar uma "relação baseada no respeito mútuo", durante a Cimeira das Américas realizada em Abril em Trinidad e Tobago, Washington manejou de maneira torpe vários assuntos relacionados com a região, o que contribuiu para a crescente desilusão com a sua gestão. Mais recentemente, o governo repentinamente deixou de reclamar, ao contrário da quase totalidade dos governos latino-americanos, a reincorporação de Zelaya ao poder antes das eleições de Novembro em Honduras.

Os Estados Unidos tampouco consultaram nem tranquilizaram com antecedência os países da América Latina sobre um novo tratado com a Colômbia, que dá a Washington acesso por 10 anos a sete bases militares nesse país.

"A mudança radical do governo com relação ao reconhecimento da legitimidade das eleições em Honduras antes da restituição de Zelaya parece ter a ver mais com a pressão dos republicanos no Senado para confirmar Valenzuela" em seu cargo, disse Cynthia Arnson, do Centro Internacional para Académicos Woodrow Wilson. "O caso da Colômbia teve mais a ver com um processo profundamente inadequado de consultas e análises com os aliados regionais", acrescentou Arnson, directora do departamento latino-americano desse centro de pesquisa com sede em Washington.

Nos dois casos, Washington ficou isolado da maioria do resto do hemisfério, especialmente do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, com Zelaya refugiado desde Setembro na embaixada do Brasil. Obama cortejou ostensivamente Lula como o sócio mais importante de Washington na América do Sul, a quem definiu como "meu homem" e o "político mais popular da Terra" na Cúpula dos 20 realizada em Londres no mês de Abril. Mas o mandatário brasileiro acusou recentemente o seu colega norte-americano de "ignorar a América Latina" e descumprir as promessas assumidas em Trinidade e Tobago.

"Obama começou com a intenção de forjar uma associação realmente estratégica com o Brasil", segundo Geoff Thale, do Escritório não-governamental de Washington sobre a América Latina. "Mas, o manejo incorrecto da crise nas Honduras e o tratado das bases na Colômbia, cujas consequências precisas para a região continuam sem esclarecimento, apesar dos esforços da Casa Branca para tranquilizar os seus governos, causaram um sério atrito e prejudicaram a relação bilateral", afirmou Thale.

Além desses problemas, o governo Obama tampouco se ocupou dos problemas que mais perduraram nas suas relações com a América Latina. Teve vários gestos conciliatórios em relação a Cuba, mas não chegou a levantar o embargo comercial, detestado quase universalmente, nem normalizou as relações com Havana, como esperavam muitos dos seus partidários nos Estados Unidos e na região.

Obama "afastou-se da política de Bush ao restabelecer as viagens para Cuba, conceder vistos a alguns artistas e reiniciar as negociações sobre política migratória", disse Sarah Stephens, directora do Centro pela Democracia nas Américas. "Mas manteve grande parte da essência de Guerra Fria de nossa política, como todos os presidentes desde Eisenhower (o general que governou o país entre 1952 e 1961) e, como o resto, não tem o que mostrar", destacou.

"Embora Cuba não seja muito importante para os Estados Unidos estrategicamente, simbolicamente é tremendamente importante para a América Latina, muita gente da região esperava que Obama, mesmo sem pôr fim ao embargo, ao menos desse passos significativos nessa direcção. O que vemos é muito pouco e muito limitado. A mensagem para a região é que não mudou muito desde Bush", disse Thale.

Tampouco mudou a política de Washington quanto à Colômbia, de longe o maior receptor da ajuda estrangeira norte-americana, nem a "guerra contra as drogas" que os Estados Unidos realizam principalmente nos países andinos, embora também cada vez mais no México e na América Central. Tão logo chegou à Casa Branca, Obama reconheceu expressamente que se deveria dar maior prioridade à redução da procura de drogas nos Estados Unidos, uma opinião que respeitados ex-presidentes de Brasil, Colômbia e México compartilharam numa declaração pública feita em Fevereiro.

"Mesmo reconhecendo o lado da procura do problema, parece que continuamos combatendo pelo lado da oferta", afirmou William LeoGrande, especialista em América Latina e decano da Escola de Governo da American University, em Washington. "O problema real é qual a estratégia de longo prazo que mude o objectivo de tentar deter a oferta para reduzir a procura? Porque há quase meio século combatemos a guerra pelo lado da oferta, é está bastante claro que estamos a perder", acrescentou.

A reforma das leis de imigração nos Estados Unidos, outro factor de irrigação nas relações com a América Latina, foi deixada de lado por prioridades nacionais mais urgentes. Parece pouco provável também que o tratado de livre comércio com a Colômbia seja levado ao Congresso para ratificação neste ano de eleições legislativas parciais, embora esteja pendente há tempos e alguns o consideram outra prova-chave do compromisso de Washington com a região.

"O governo Obama ainda não deixou a sua marca nas relações hemisféricas simplesmente porque está afogado por outras crises e prioridades", disse Arnson. Houve "uma continuidade significativa na prática", apesar da "profunda mudança no tom e o estilo diplomático, a favor de uma estratégia de maior colaboração", acrescentou.

Entretanto, LeoGrande vê um problema estrutural maior. "Cada governo que chega promete política nova para a América Latina e nenhum, com excepção de Ronald Reagan (1981-1989) a teve. Todos tiveram de lidar com problemas muito mais graves noutras áreas do mundo", afirmou. "Assim, a política para a América Latina está numa espécie de piloto automático, porque os principais membros do governo não têm tempo para se dedicar a ela, e os subsecretários não têm autoridade para adoptar mudanças fundamentais", acrescentou.

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Jornalista, Inter Press Service
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