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Receber ou praxar?

O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.
Foto Paulete Matos

Quem assistir a debates sobre praxe verá praxistas a usarem os argumentos mais rebuscados para tentarem defender o indefensável. A praxe é boa porque ensina a submissão e isso é essencial para sobreviver no mundo moderno. A praxe é boa porque humilha e as pessoas têm o direito de ser humilhadas. A praxe é boa porque é em contextos de grande adversidade e de sofrimento pessoal que se fazem as melhores amizades. Mas nos últimos tempos houve um argumento que se sobrepôs a todos os outros: a praxe é boa porque tudo o que acontece de errado na praxe não é praxe.

O jogo de semântica é tão surreal que deixa qualquer pessoa confusa. Mas foi isso que o Secretário de Estado da Juventude disse sobre a tragédia do Meco: o que aconteceu não foi uma praxe. Foi isso também que praxistas disseram no programa “Prós e Contras” sobre as imagens mostradas pelo documentário “Praxis”: aquilo que vemos no filme não são praxes. Mas então o que são praxes afinal? A acreditar no que foi dito na televisão por praxistas, são serenatas, festas, eventos de caridade e atos de entreajuda entre colegas.

Com tanta confusão, o debate torna-se impossível. Como acho que é importante debater a praxe e não há debate onde há jogos de semântica, proponho então que distingamos entre duas categorias mutuamente exclusivas.

A primeira categoria é “receção”. Nesta categoria cabem todas as atividades que permitem que novas estudantes conheçam melhor a faculdade e a cidade, incluindo festas, tertúlias, concertos ou visitas guiadas. Infelizmente, estas atividades são raras. As Associações de Estudantes e Associações Académicas já há muito que se demitiram de organizar atividades de receção, tendo-as trocado pelas praxes. As direções das instituições de ensino superior seguem o mau exemplo e são incapazes de organizar qualquer tipo de atividades de receção. Com uma importante exceção: em algumas universidades, existem programas de voluntariado, apoiados logística e financeiramente pelas reitorias, através dos quais estudantes podem participar em atividades de receção de estudantes de Erasmus. Ter uma receção decente para novos alunos no ensino superior seria tão simples quanto estender estas atividades a todo o universo estudantil.

A segunda categoria é “praxe”. Nesta categoria cabem todas as atividades de submissão e rebaixamento dos novos alunos, como pôr-se de quatro, rastejar, simular poses sexuais, rebolar na lama ou andar na rua com fraldas na cabeça. Estas atividades, realizadas ao abrigo de instituições não eleitas e reguladas por códigos macabros inventados por líderes auto-proclamados, podem ser mais ou menos violentas, mais ou menos humilhantes, mais ou menos duras, mas são sempre atentatórias da dignidade humana. Não passam de atividades criminosas e, tal como acontece com todos os crimes, o consentimento (mais ou menos voluntário) das vítimas não atenua a gravidade do crime.

Todas as atividades de receção são de encorajar, todas as atividades de praxe são de repudiar. Creio que esta ideia é consensual, a avaliar pela forma como as pessoas assistem horrorizadas às praxes filmadas para o “Praxis”. Mas repudiar a violência da praxe não se confunde com dizer que não é praxe. O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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Neste dossier:

Praxes: humilhação e impunidade

O país despertou no último mês para a realidade das praxes do ensino superior, esses rituais de humilhação e violência psicológica que ganharam força nos últimos anos e hoje contaminam uma parte importante da vida universitária e do convívio entre estudantes.
Dossier organizado por Luís Branco.

Cronologia da violência das praxes

Com base nas notícias compiladas por coletivos antipraxe ao longo da última década e meia, lembramos aqui alguns dos casos denunciados por vítimas da praxe que chegaram à comunicação social.

“Não há boa praxe ou má praxe, praxe há só uma”

Bruno Moraes Cabral, realizador do documentário “Praxis” - premiado no Doclisboa 2011 e recentemente transmitido na RTP - diz ao esquerda.net que não faz sentido falar de “integração” quando todas as praxes se baseiam em valores de dominação “contrários ao que deviam ser os princípios da universidade”.

Se não agora, quando?

A primeira intervenção que fiz no Parlamento, no final de 2007, foi sobre a violência nas praxes. Seis anos depois, esse exercício de poder e a impunidade continuam a ser a regra, se não dentro, à porta das Universidades.

O que dizia o relatório parlamentar de 2008 sobre as praxes

Por iniciativa do Bloco de Esquerda, a Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República discutiu as praxes e recolheu contributos do meio académico. Mas as conclusões e propostas concretas nunca foram seguidas pelos governos.

Cinco mitos em torno das praxes

O historiador Rui Bebiano regressa a um tema que conhece bem para colocar em causa cinco mitos sobre as praxes: os da “tradição”, “simpatia popular”, “aceitação pelos caloiros”, “prestígio para as instituições” e “integração ou preparação para a vida”. Artigo publicado no blogue “A Terceira Noite”.

Debates sobre a Praxe: balanço dos Prós e Contras

O debate sobre a praxe que surgiu, como uma avalanche, nos media e redes sociais nas últimas semanas apresenta poucas novidades e corre sérios riscos de deixar tudo na mesma, apesar de, pela primeira vez, ter interpelado toda a sociedade e todos os responsáveis, das associações de estudantes ao Primeiro-ministro.

Duas memórias da praxe

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.

A Volta da Praxe

Em meados da década de 1990, a praxe e a “tradição académica” já estavam disseminadas no ensino superior público e privado. Esta reportagem de Luísa Costa Gomes, publicada em 1996 na revista Grande Reportagem, parte dessa realidade para recuar aos últimos séculos da história das praxes em Portugal.

Coimbra não é vossa

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a  narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos. Artigo de João José Cardoso, publicado no blogue Aventar.

A praxe coimbrã no fim da ditadura

Este artigo do historiador Miguel Cardina, publicado em 2008 na Revista Crítica de Ciências Sociais, relaciona os movimentos estudantis dos últimos anos da ditadura com as mutações então ocorridas no terreno da praxe académica em Coimbra.

O Manifesto Anti-Praxe de 2003

Em 2003, o Movimento Anti-Tradição Académica juntou-se ao coletivo Antípodas e à República das Marias do Loureiro para lançar um desafio a personalidades de dentro e fora do meio académico: juntarem-se pela primeira vez numa tomada de posição pública contra as praxes.

Receber ou praxar?

O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.

A praxe é uma aventura

Música anti-praxe composta e interpretada pelo duo Azeitivinagre em 2010.

Praxistas defendem "direito à humilhação"

Praxistas defendem a humilhação como forma de integração na universidade e na vida activa, num debate na Aula Magna, em Lisboa, depois da projeção do filme "Praxis".